Maria Quintans
É neste inferno que se mascara o poema. Um homem nu, duro de barba e porte e o silêncio esta humilhação só suportável pelo medo.
Irei guardar as nossas conversas num balde de luz. Saberemos sempre que a viagem é longa mas que a chamamos a nós. E a passagem ampliará a hora. Todas as horas desesperadas na quebra da negação.
Todos os silêncios são um só. E o leite há-de chegar a escorrer pelo copo cheio onde todos beberemos, indiferentes se gostamos, não gostamos, ou queremos.
E neste inferno a satisfação supõe um instante, um só instante ampliado pela vida encontrada sempre que o sofrimento cai de quatro em genuflexão obrigatória.
Do medo faremos o silêncio e nada responderemos às perguntas feitas à noite, em horas insensatas para os poemas que dormem.
O silêncio será sempre a longa transformação da palavra.
***
há uma sombra enorme na minha cabeça. uma coisa que depois de tudo não é nada mas que quando acontece é hoje. escava doido um alfinete dentro do peito a picar os teus mamilos que se escondem no armário porque eu sou a minha mão no fundo do teu sofrimento.
há um desenho enorme na minha cabeça que vibra na renúncia da vontade e fala de sereias e de invernos estreitos num corpo a fugir à pressa selvagem, estrangulado numa alegria estúpida, cada vez mais isolada, agarrada à luz que tudo abre se pensarmos que o martírio dos olhos são os próprios olhos, distraídos pelas sombras que andam de um lado para o outro às cegas,
incertas e separadas de placentas-mãos, e pausas na respiração dos homens suaves.
há um caminho deserto na minha cabeça que roda sobre si e nunca compreende a voz que lhe amacia as grades da janela de onde nunca se vê o condenado, por ser ela própria a teia, a máscara – a mão entre a fúria e o amor a comer de pé as bocas enroladas na luxúria dos deuses analfabetos.
lá fora é apenas noite na sombra da minha cabeça.
***
os habitantes das árvores transformam-se em peixes
rebolam nas palavras com as antenas de fora e
seguem os gatos.
as flores amar-se-ão sempre
num voluptuoso lago crescido de flamingos-frangos
as formigas nunca poderão descer das árvores com o aquário por baixo.
os flamingos-frangos descansam numa pata e os outros bichos olham-se numa teimosia danada.
é um problema sem solução.
***
Poema como se fosse tudo
esta é a metafísica saturada do sonho:
não dizer nada
dormir com o cão enrolado à pele
rasgar no desejo o fôlego do poema
afundar de ironia a almofada do silêncio.
(Maria Quintans é escritora em Lisboa, Portugal. Publicou em 2008 o livro de poemas “Apoplexia da Ideia”; em 2010 “Chama-me Constança” e em 2013 “O Silêncio” (Editora Hariemuj).Em 2009 faz parte da criação da Revista Inútil, onde é diretora editorial. Em 2011 cria a Editora Hariemuj, que se dedica especialmente à poesia. Organiza, em 2012, a antologia poética “Meditações sobre o Fim – Os últimos poemas” (Hariemuj Editora))