Roberta Tostes Daniel
Deus me abre a corcova de pregador
esqueço parábolas.
O ódio acumula no tempo, nos móveis pesados.
Tudo perdi. No entanto, o amor das coisas breves.
No entanto, a ancestralidade.
Com os olhos desfolhados, as mãos cheias de feitiço
póstumas as mãos, a rondar o real além do real.
A neve suja do sol, Simenon, três vidas
a mancha o eixo infinito
do homem ordinário.
Quisera esvair o deserto
chamar de norte o começo
traficar palavras.
Tornei-me a arma
que me cala.
***
Uma casa perto
de um vulcão
pode ser
um rastro da gente
jamais extinto
a ciência nega
mas a lógica subvulcânica
do povo sustenta
evidências de nós
uma casa-oferenda
há quarenta milhões de anos
lava oceanos
e um barco de orixá
faz a vez de vaso
de planta
subvertemos o risco:
imergir e germinar
são movimentos
inerentes às casas
às gentes
e aos vulcões
um subúrbio ou iguaçu
nada é novo no epicentro
desse rio
que não nos suplanta
somos o alicerce
a planta da casa
nasce dos pés.
***
Rio-Niterói, 1973
Os senhores me veem derrubando pistas
como se desmonta estrada
como se inventa ponte
emerjo de nada a nada
cresço com minha surdez.
Feita desaparecida
santa metálica
dos lábios de esterco
baía, vem me dizer
por caminhos de resvalo:
uma mulher ou uma cidade
se arrastam por enigmas.
***
Retrato
Algo da dureza dos séculos
lança sobre meu rosto
os faunos da tarde.
Lívido ante laranja
mágicos, incautos
traços – traçantes.
Sabem sazonalidades
zonas de sombreamento
contornam o queixo
regam a fome –
entorta a boca.
***
Escrevo para satisfazer o desejo de Deus.
Este que aponta – Nonada.
Escrevo para ser Deus.
Com a fortaleza dos dedos fracos.
Dos dedos sós, dedos de vício
dedos brincantes.
Roberta Tostes Daniel é carioca nascida em 1981, cursou jornalismo, mas se formou em Letras. Escreve em blogs há mais de uma década. Já colaborou com diversas revistas literárias pela internet e participou de algumas antologias. Não tem livro publicado. Mantém o blog Sede em frente ao mar.
e a gente vai tomando gosto de morar nas palavras, quando conflui com poesia assim. todas lindas, de frestas para sonhar e cair em seus hiatos.
Belíssimos poemas!
Muitos abraços portugueses
Jorge Vicente