Bruna Mitrano
da janela, aparávamos a água com as palmas em concha – serpeava prata nos antebraços. duas vezes, ela juntou os dedos e fez como se lavasse as costas dum recém-nascido. abaixávamos as cabeças e víamos a chuva de onde deus a vê, umas linhas semiperfeitas a estrelar no chão. nossos ombros unidos, sua pele lisa e negra. no meu rosto, o vapor frio do seu sorriso sem palavras. não olhávamos pra trás – o quarto branco, a cama ao centro, os lençóis usados. não nos olhávamos. (eu esperava o sol, quando a morte me tocava).
***
já não alcançava seu sono
lembrava de quando podiam ser tristes juntos.
soubesse a hora de ir, calaria
e encolheria o corpo raquítico sob a coberta embolorada.
por outro extremo, lacunava-se em palavras rasas,
entregue, farta, extasiada –
que não pesasse ser pó, havendo mãos.
***
o ruído dos dedos esfregando a barba
os olhos inarticulados dos pesadelos diurnos
as luzes fragmentadas nas paredes exaustas de tantas
falas – era quando fingíamos ser livres
desconjunturando a barbárie
desses tempos inaudíveis.
***
o sangue no antebraço
que a luz baça faz preto
punho cerrado
uma lasca de vida agarrada como última –
nada importa se há dor.
***
o cobertor no chão
invólucro seguro que não se ousa enjeitar
abraça uma ausência morna
fora, o dedilhar contínuo de quem olhando a tela teme –
absurdos Morte muxoxa bate de leve o punho na perna direita –
o imponderável particular.
***
já não sabiam se temiam por si ou pelo outro. a cabeça de lado, o pelo na língua, os roxos na pele. aqueles homens apaixonados pelas coisas erradas, pelas pessoas erradas. estive muito tempo dentro dos dias, e não olhar pra trás era o mesmo que pedir não me deixa ir. mas há beleza no hálito doente, nas vicissitudes dos corpos, no rasgo imprevisto na carne, e não tão só, quando a espera é o grito imanente, irreversível.
Bruna Mitrano (1985) é favelada, professora da rede pública e mestre em Literatura Portuguesa (UERJ). Em 2010, esteve entre os vencedores do Prêmio Off-Flip, na categoria Conto. É autora fixa na revista Mallarmargens. Tem textos e desenhos publicados nos: Contemporary Brazilian Short Stories (Califórnia), Flanzine (Portugal), jornal Plástico Bolha, revista Germina, Zine Joia, blog da Confraria do Vento, blog da Editora Oito e Meio, Fórum Virtual de Literatura e Teatro, revista Tlön (Portugal), revista Diversos Afins etc. Participou das antologias “Algum vazio nesta paz fajuta” e “Clube da Leitura Vol. III”. Seu primeiro livro de poemas e desenhos – “Não” – será lançado em breve pela editora Patuá.
Co esta escrita tão bonita, ela merecia um lugar na Universidade, ao menos. Escola pública não dá camisa a ninguém, eu que o diga depois de aposentada. O Estado me dá suaves prestações de sslário micha. Um abusoso nunca sentido por mim.
Cuide-se, amiga!
Maria Lindgren
Mais um comprobante do que eu disse anteriormente. òtima poetisa!
Parabéns, Bruna!
Toda linda, ela deixa pegadas e some _ao menos seguiremos rastros, imprecisões súbitas de Bruna Mitrano S2