Jorge Elias Neto
Manual para estilhaçar vidraças
Da raiz do nome
─ esses dedos cravados
no beiral da fenestra ─
extrair a resina impura.
Forjar as velas,
acender o arrebol
na cela escura.
Sugar o ar,
queimando os segredos
da memória das frestas.
Comemorar o vácuo
estendido no vazio
entre as unhas
e paredes.
Tornar insuportável
o convívio com a fumaça
do tempo
…...̶ desfazer-se da saudade.
Alardear a fuga
inútil da cama,
o suicídio das fotografias.
Com a cor das tintas
…………………………na pele,
se esfregar nas quinas
para sufocar seu cheiro.
Cuspir nas plantas secas,
urinar nas portas,
misturar-se ao cheiro das cinzas.
Soltar o grito
e descobrir-se eco.
Serrar os pés da cadeira
……..─ espalhar no piso
a última réstia da certeza.
Arregalar os olhos
─ sustentar as pálpebras
e sua obtusa fuga.
Não contornar os segredos
─ sacrificá-los.
(Perceber que o fora
é um longe,
e o dentro,
……………barreira intransponível..)
Sentir o arrepio das cortinas,
………….o crepitar dos tacos,
………….o suor da vidraça.
Sujar de sangue
a moldura sem espelho.
Reparar na janela
e sua mirada sem luz.
No breu da não-paisagem
misturar um circulo negro
…………….─ alvo no escuro.
Pressentir o estalo
da grade.
Dispensar o portal
da crença.
Aceitar o flagelo do ícone,
…………..a lascívia dos místicos.
Ao que ofusca,
o aceno,
……….ao que enrosca,
……….o degredo.
Reter o passo,
recolher no ócio
o espanto.
Ouvir o canto
da primeira trinca
……..o pio agudo
……..nas rachaduras.
……………..Estampido,
estilhaços sem rumo,
restos de tudo.
Lançar-se aos cacos
…..─ fôlego dos dias.
Recolher a sombra,
a imagem bipartida.
Perseguir a identidade,
levantando as pedras
das vias túrbidas.
***
Sob a pele
O corte,
a pele
– precipício.
Nem todo o fim
se desfaz em noite.
(. A noite decide o nome
de seus filhos..)
O abraço,
a espiral
– o Mundo.
Um recado do desastre
ao pé do ouvido.
( .O traço sob a pele
– cabedal de vícios ..)
***
Livro negro
(. Do canto obscuro
a beira do mito,
percorre-se o possível..)
Medusa,
Sangre minha língua,
Recubra de vida a hóstia
– alento do passado.
Musa,
surpreenda o que no sossego
dos dias tingidos,
simplesmente – ignora.
Ruína,
desabe com
as casas mortas.
Sertão,
rege a cisma no terço
e aboio dos de minha carne.
Cedro,
desfaça a nave fenícia
e entorne o vinho sobre as águas.
Poesia,
transforme em ruído
o som da espera.
Palavra,
seja o orvalho
de minha passagem.
Madrugada,
resgata o aceno
do tempo em meio a névoa .
Eternidade,
Estende sobre as asas
a poeira das estrelas.
Solidão,
não ignore a oferta do corpo
que a procura de ti, salta.
***
Campo de batalha
A manhã se dissipava
em tons de normalidade
:Trincheiras
cobriam a distância
do silêncio
:Encostas
não se prestavam aos ecos
:Os sonhos
fluiam das valas
ao mar
( .Não se comemora a febre
onde inexiste vida..)
Na rede de intrigas
refringia o orvalho.
Nomes brotavam
florindo o charco
E o perfume
ignorava o olfato
da ausência.
(. O mais é um vazio
onde inexiste vida..)
A brisa revolvia
as cartas
………..letras alimentavam
………..os musgos
e os metais
entoavam louvores.
( .Pode-se falar de paz
onde inexiste vida..)
***
Noturno
O impulso carrega
uma promessa dos pés
Andava
─ confortavelmente ─
no escuro
.( .sentia o calor
das coisas mortas)
(..Quem o pariu foi o vento nordeste
…………………assustado
………………..com o apito do navio..)
Nas mãos
a lista dos homens tristes
e linhas tortas
─ desencontradas
A seu lado
uma inútil sombra
─ essa mundaneidade
Tinha a noite
e a paz das sarjetas abandonadas
O Mundo
acontecia dentro dos olhos
Deus
era imagem ausente
à margem da fábula
O corpo
─ acaso assombroso ─
rompia a escuridão
da Ilha morta.
***
Cabotino
Me gusta esta costumbre de la rubrica por lo inútil
Miguel de Unamuno
O sal curtiu
a corda exangue
Amarras e terços
costuraram os dias
a esta terra
ao cais do porto
e ao apito dos navios que conhecia pelo nome
Ir e voltar:
sonho de uma sombra
Até o dia
em que o Não a reconheça
e vibre a corda
lançando-a de volta
à sinfonia do esquecimento.
Jorge Elias Neto é médico, ensaísta, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. São de sua autoria os livros: “Verdes Versos” (Flor&cultura ed. – 2007), “Rascunhos do absurdo” (Flor&cultura ed. – 2010), “Os ossos da baleia” (prêmio SECULT-2013), “Glacial” (Patuá – 2014), “Breve dicionário poético do boxe” (Patuá – 2015) e “Cabotagem” (Mondrongo – 2016). Publica regularmente nas revistas eletrônicas: Portal Cronópios de Literatura, Diversos Afins, Mallarmargens e Estação Capixaba. Membro da Academia espírito-santense de letras.