Janela Poética III

Jorge Elias Neto

 

Foto: Angelik Kasalia

 

Manual para estilhaçar vidraças

 

Da raiz do nome
esses dedos cravados
no beiral da fenestra
extrair a resina impura.

Forjar as velas,
acender o arrebol
na cela escura.

Sugar o ar,
queimando os segredos
da memória das frestas.

Comemorar o vácuo
estendido no vazio
entre as unhas
e paredes.

Tornar insuportável
o convívio com a fumaça
do tempo
…...̶ desfazer-se da saudade.

Alardear a fuga
inútil da cama,
o suicídio das fotografias.

Com a cor das tintas
…………………………na pele,
se esfregar nas quinas
para sufocar seu cheiro.

Cuspir nas plantas secas,
urinar nas portas,
misturar-se ao cheiro das cinzas.

Soltar o grito
e descobrir-se eco.

Serrar os pés da cadeira
……..─ espalhar no piso
a última réstia da certeza.

Arregalar os olhos
─ sustentar as pálpebras
e sua obtusa fuga.

Não contornar os segredos
─ sacrificá-los.

(Perceber que o fora
é um longe,
e o dentro,
……………barreira intransponível..)

Sentir o arrepio das cortinas,
………….o crepitar dos tacos,
………….o suor da vidraça.

Sujar de sangue
a moldura sem espelho.

Reparar na janela
e sua mirada sem luz.

No breu da não-paisagem
misturar um circulo negro
…………….─ alvo no escuro.

Pressentir o estalo
da grade.

Dispensar o portal
da crença.

Aceitar o flagelo do ícone,
…………..a lascívia dos místicos.

Ao que ofusca,
o aceno,

……….ao que enrosca,
……….o degredo.

Reter o passo,
recolher no ócio
o espanto.

Ouvir o canto
da primeira trinca
……..o pio agudo
……..nas rachaduras.

……………..Estampido,
estilhaços sem rumo,
restos de tudo.

Lançar-se aos cacos
…..─ fôlego dos dias.

Recolher a sombra,
a imagem bipartida.

Perseguir a identidade,
levantando as pedras
das vias túrbidas.

 

 

 

***

 

 

 

Sob a pele

 

O corte,
a pele
– precipício.

Nem todo o fim
se desfaz em noite.

(. A noite decide o nome
de seus filhos..)

O abraço,
a espiral
– o Mundo.

Um recado do desastre
ao pé do ouvido.

( .O traço sob a pele
– cabedal de vícios ..)

 

 

 

***

 

 

 

Livro negro

 

(. Do canto obscuro
a beira do mito,
percorre-se o possível..)

Medusa,
Sangre minha língua,
Recubra de vida a hóstia
– alento do passado.

Musa,
surpreenda o que no sossego
dos dias tingidos,
simplesmente – ignora.

Ruína,
desabe com
as casas mortas.

Sertão,
rege a cisma no terço
e aboio dos de minha carne.

Cedro,
desfaça a nave fenícia
e entorne o vinho sobre as águas.

Poesia,
transforme em ruído
o som da espera.

Palavra,
seja o orvalho
de minha passagem.

Madrugada,
resgata o aceno
do tempo em meio a névoa .

Eternidade,
Estende sobre as asas
a poeira das estrelas.

Solidão,
não ignore a oferta do corpo
que a procura de ti, salta.

 

 

 

***

 

 

 

Campo de batalha

 

A manhã se dissipava
em tons de normalidade

 

:Trincheiras
cobriam a distância
do silêncio

:Encostas
não se prestavam aos ecos

:Os sonhos
fluiam das valas
ao mar

( .Não se comemora a febre
onde inexiste vida..)

Na rede de intrigas
refringia o orvalho.

Nomes brotavam
florindo o charco

E o perfume
ignorava o olfato
da ausência.

(. O mais é um vazio
onde inexiste vida..)

A brisa revolvia
as cartas

………..letras alimentavam
………..os musgos

e os metais
entoavam louvores.

( .Pode-se falar de paz
onde inexiste vida..)

 

 

 

***

 

 

 

Noturno

 

O impulso carrega
uma promessa dos pés

Andava
─ confortavelmente ─
no escuro
.( .sentia o calor
das coisas mortas)

(..Quem o pariu foi o vento nordeste
…………………assustado
………………..com o apito do navio..)

Nas mãos
a lista dos homens tristes
e linhas tortas
─ desencontradas

A seu lado
uma inútil sombra
─ essa mundaneidade

Tinha a noite
e a paz das sarjetas abandonadas

O Mundo
acontecia dentro dos olhos

Deus
era imagem ausente
à margem da fábula

O corpo
─ acaso assombroso ─
rompia a escuridão
da Ilha morta.

 

 

 

 

***

 

 

 

Cabotino

 

Me gusta esta costumbre de la rubrica por lo inútil
Miguel de Unamuno

 

O sal curtiu
a corda exangue

Amarras e terços
costuraram os dias
a esta terra
ao cais do porto
e ao apito dos navios que conhecia pelo nome

Ir e voltar:
sonho de uma sombra

Até o dia
em que o Não a reconheça
e vibre a corda
lançando-a de volta
à sinfonia do esquecimento.

 

Jorge Elias Neto é médico, ensaísta, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. São de sua autoria os livros: “Verdes Versos” (Flor&cultura ed. – 2007), “Rascunhos do absurdo” (Flor&cultura ed. – 2010), “Os ossos da baleia” (prêmio SECULT-2013), “Glacial” (Patuá – 2014), “Breve dicionário poético do boxe” (Patuá – 2015) e “Cabotagem” (Mondrongo – 2016). Publica regularmente nas revistas eletrônicas: Portal Cronópios de Literatura, Diversos Afins, Mallarmargens e Estação Capixaba. Membro da Academia espírito-santense de letras.

 

 

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