Janela Poética III

Camila Assad Quintanilha

 

Foto: Adelmo Santos

 

O que não está aqui não está em lugar nenhum

 

A injunção do cronômetro
nos faz esquecer
que o tempo linear é
uma abstração
recente
e insidiosamente deletéria

O calendário ordena
e materializa o passado,
o relógio faz tic tac
ornamenta a cozinha,
conta os segundos que eu passo
a espera de sua ligação
mas de que morremos,
senão de tempo?

E toda a areia dessa minha ampulheta
corrói nossa vida
antecipa a desordem
arremessa nossa cara
contra a parede
sem reboco.

Nada aqui é limitado
E é sempre mais tarde do que você pensa.

 

 

 

***

 

 

 

Tudo o que está aqui está lá

 

eu me abaixei entre as pernas de
um camelo
esculpido em um
pedra gigante
que emergia de
um muro
deixando a onda passar
a onda infernal
me revelou um novo aspecto
completamente íntimo
da morada dos deuses:
– não há ninguém em casa

 

 

 

 

***

 

 

 

[poema do porto ao tibete – terceiro movimento]

 

não era água. era areia.
talvez fosse só o tempo.
talvez fosse muita coisa porque era o tempo.
eu fiquei sedenta, mas resignada.
quem ousou encarar o tempo não retornou à margem.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

[um pasito bailante]

 

seu coração na altura exata das minhas orelhas
pra ouvir a nebulosa dos que andariam a pé
por todo o campo
em busca de uma flor rúbea,
dos que anseiam a revolução
& repartem pão e ideias
multiplicando líquidos e conceitos
nessa cidade catatônica
pedindo esmolas
de tempos mais brandos
que nunca vão chegar.

ontem nós dois vimos
o mesmo desenho
numa mesma nuvem
e isso é a mais profunda troca que pode haver
entre dois seres humanos

 

 

 

***

 

 

 

[poema pra driblar o inferno]

 

eu construo uma antessala
com balões de gás hélio e reciprocidades
fico apanhada ao seu dedo mindinho
como se um furacão nos cingisse
e você é esperança derradeira;
as mesas estavam postas mas foi tudo derrubado.
bagunça, tingiu meu coração com manteiga e mel
e na boca gosto de fim de feriado.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

[notas sobre o sutiã de renda preto]

 

Simetrias rendadas que se bifurcam ao centro. Hipocrisias rendidas que sustentam prazer e alimento. Ele segura um par de estrelas, astros que orbitam em cabeças mal-intencionadas, mesmo sendo sempre estáticos (desafiados apenas e inevitavelmente pela gravidade que faz com que tudo amaine). Aperta a anatomia, oprime desejos, amarga sentimentos. Limita, esmaga, maltrata; por vezes empina, levita pomos sobrepondo volúpias carnais ao mantimento sagrado. É feito de panos, aros, bases, bojos. Mundanos desejos repousam em suas camas semicirculares. Duas medialunas cingidas comprimindo lunas llenas perfeitas.

 

Camila Assad Quintanilha nasceu em Presidente Prudente/SP, Brasil, em 1988. Escreve, traduz, desenha e pinta. É autora do livro de poemas Cumulonimbus (Quintal Edições, 2017) e do Desterro, projeto comtemplado pelo Programa de Ação Cultural (ProAC) da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo/2018, a ser lançado no próximo ano. Já publicou em diversas mídias literárias no Brasil e em Portugal.

 

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1 comentário

  1. Quem não gosta de poesia bom sujeito não é,ou é ruim da cabeça ou doente do pé.

    Uma boa poesia alimenta nossa alma.

    Muito bom

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