André Rosa
O poema da dor
À Heitor Brasileiro
O poema nasce da dor
Da indizível dor
A dor precária e suja
O poema é a própria dor
Narrada em desespero
A dor calada e velha
O poema traduz a dor
Sem rimas
A dor miúda e desvalida.
***
Giroscópios
Entretanto vigio a frase
Escorregadia membrana
Sob chuva de amarelos
Que preparam o dia
Vai-se o corte, a espera
A frase de magnólia
Que apodrece
As plantas, os giroscópios,
A escama, o chumbo do dia.
***
Faca do Sol
Me fiz rio navegável,
Faca do sol.
Nasci peixe feio
Sob as trovoadas de junho.
Banho as patas do gado,
Alimento seu existir.
Converso em água e sal,
Convulso o caminho
Em que me arrasto.
Sou verde, castanho ou negro.
Dependo dos olhos que fitam.
Sou agora rio: antes e depois.
***
Hábito
Onde os meus olhos
Eram noite e transitórios,
Julgo a tessitura do tempo
E transitório serei
Aos teus olhos suspensos.
Perdoa se me invento
A cada espelho,
A cada sumo da rudeza.
Ao arrepio dos pelos
Desprezo a demasia do hábito.
***
Nu
Durmo nu
Apesar dos latidos.
Sou ermo e rotina,
Spleen nos ilhéus.
Durmo nu e
Ninguém me anuncia
Mesmo que grite
O líquido da rua.
Durmo nu
E invisível.
***
Vento agrário
Quem detiver o tempo nos dentes
Irá quedar o desejo,
Conduzir águas ao extremo
No sereno em furta-cor,
No desmaio sumário do sol.
Quem guardar as ruas nas unhas
Irá dedilhar os rastros da noite
Antes que a morte navegue
O seu barco sírio.
Há um vento agrário no ranger da flor.
André Rosa é Ilheense, nascido na Maternidade Santa Isabel. Autor de “Morte e gênero: um estudo sobre a obra de Jorge Amado” e “Quintais do Tempo”. Coordena o Prêmio Sosigenes Costa de Poesia e compõe a comissão organizadora da Festa Literária de Ilhéus. Atualmente está presidente da Academia de Letras de Ilhéus.