Janela Poética III

Maria Fernanda Elias Maglio

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

EU ERA O RIO

 

“... e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”
(Guimarães Rosa)

 

Gosto das paredes emboloradas
Do lodo nas quinas das garagens escuras
O capim-gordura crescendo no vão do cimento
O calor claustrofóbico das cozinhas oleosas

Das rachaduras nos tijolos
A carne da construção revelada pela negligência
Do tempo
Das gentes
Dos desencontros

Gosto dos sentimentos sem nome
Das saudades que são também repulsa
Esquecimento
Do amor que é também raiva
Que é também amor

Das nojeiras inconfessáveis
Cativas nos instantes de solidão
Ranhos lambidos com a ponta da língua
Unhas mastigadas
Cascas de feridas partidas na força dos dentes

Gosto dos bichos que não são estimados
Piolhos dentando a pele do crânio
Baratas gordas se espremendo no estreito do ralo
As antenas por último
Prenúncio de tudo que é imundo

Gosto das ausências
Os cantos não preenchidos por móveis
A cama não repartida
O prato vazio
Sem farelo de comida recente

De tudo que não é recente
Lutos petrificados pela austeridade dos anos
Casas erguidas por braços mortos
Há tantos anos mortos

Gosto da morte
O silêncio das alamedas de sombras
As filas das formigas alargando as trincas dos túmulos
O cheiro mineral das fendas

Não me interessam as flores violetas
Crescendo na sombra das amoreiras
Nem as amoras
Cajus suculentos
Cactos ostentando folhas
Que também são caules
Que também são folhas

Eu quero o escuro do debaixo da terra
Pretendo a fundura
O miolo do acontecer
Ossos ocultos
Mortos de ninguém
Nem cruz, nem placa de bronze

Não me importa a superfície
O lado de fora do chão
Anseio veios subterrâneos
Lençóis freáticos
O magma fervendo no coração do mundo

Nada me vale o mar turquesa
Ondas esfarelando na areia
Desmanchando conchas
Eu quero o oceano profundo
Peixes abissais de couro transparente e sexo hermafrodita
Enguias elétricas sem olho nem boca
Contorcendo a escuridão

Não me comove jardins semeados
As filas simétricas das rosas e das margaridas
Árvores podadas em círculo
Gosto das florestas indômitas
Cipós estrangulando troncos
O chão úmido do musgo apodrecido
Camadas de folhas secas dando abrigo a aranhas fluorescentes
Escorpiões, formigas ruivas, lacraias de mil pés

Não quero o cruzeiro do sul, a via láctea, saturno
Não me interessam cometas e a composição do solo da lua
Tenciono matéria escura, as bordas de fora do universo
O buraco negro e a gula que engole o tempo
O passado obliterado e o futuro cindido em um milhão
Doze milhões de futuros

Não sei em que possibilidade me perdi
No destino estilhaçado em que eu era
Uma camponesa na revolução mexicana
Um padre na inquisição
Uma corça de pata fraturada
Um peixe remando o rio
O rio
Eu era o rio

Era morna e fresca
O limo das margens
As águas cáusticas matando carpas
Botos
Lontras
E aguapés

Depois eu era os aguapés
Era o fundo e os barcos de papel
As crianças brincando na beira
Sete crianças soltando barquinhos

Uma delas era eu
A menina de vestido azul
Escapulário
E olhos líquidos
Chorava pelas orelhas
A vida escorrendo nas fendas
E de novo rio
Para sempre eu era o rio

 

 

 

 

***

 

 

 

 

E NÃO TEM ESTRADA QUE EU NÃO QUEIRA

 

Quero a vida de cara limpa
Não quero maconha, yoga, sertralina
Quero hoje e muito
O ontem e o atrás
Quero dor sem intermédio
Maternidade sem consolo

Não quero vírgula, hiato, camisinha
Quero onde e nunca
O longe e o depois de amanhã
Quero Líbia e Guatemala
Esquimós e aborígenes
Quero sal, umbigo e quinta-feira

Quero ontem o que não quis amanhã
Quero dentes firmes e coxas flácidas
Quando não quero nada quero muito
E quero muito cada quando
Quero lá-aqui-nunca e dentro-fundo-depois
Quero o através, o avesso, o atravessado

E não tem estrada que eu não queira
Nem caminho que minhas pernas não pretendam
Quero o reverso da falha e o verso da perfeição
Quero dormir de cansaço e acordar sem sol
Quero sonho sem sono
E sono povoado de estrelas cadentes

 

 

 

 

***

 

 

 

 

AGORA QUE TEM ÁGUA EM MARTE

 

a segunda de manhã me escorreu com a urina
e a noite de quarta evaporou no suor das minhas axilas
o tempo é alguma coisa tão líquida
que escorre e evapora
de um jeito que só os líquidos fazem

ontem eu quis ser uma pessoa melhor
hoje me esqueci

descobriram água em Marte
e é água mesmo
não é gelo, gás metano, prata derretida
o tempo de Marte também deve escorrer
pelos rios subterrâneos
lotados de bactérias marcianas
microrganismos de antenas azuis

agora que tem água em Marte
não dá tempo de ser uma pessoa melhor
o ser humano anda pela terra há 200 mil anos
o universo tem a idade de 13,7 bilhões
o ser humano é o microrganismo de antenas azuis
do universo

agora que tem água em Marte
a gente precisa deixar de ter insônia
e culpa

agora que tem água em Marte
a gente está absolvido para sempre
até os próximos 3,8 bilhões de anos
quando não vai ter água aqui
só em Marte

agora que tem água em Marte
eu nunca mais vou deixar de sentir sede

 

 

 

 

***

 

 

 

 

EU ERA PRIMATA E SEGURAVA PRIMATA

 

Não me lembro o que eu era antes de ser mãe
Alguma coisa entre tijolo e rã
(sólida e escorregadia)
O tempo de antes ficou sujo de uma coisa
que eu não sei
A vida principiou naquele dia
e depois só futuro
E era um futuro tão velho que parecia passado
Quando eu coloquei no colo minha filha
Era como se carregasse minha mãe
Ou a mãe da minha mãe
Ou a primeira mulher do mundo
Que era gente e era macaco
Ali eu era primata e segurava primata
E doía tanto

 

 

 

 

***

 

 

 

 

PONTES DE EINSTEIN-ROSEN

 

Para Gabriel

 

não, não parece que foi ontem
foi há dois séculos
talvez três
a gente se encontrou numa dessas dobras do tempo
quando o passado é também futuro
e é também passado
não há dia, nem ano, nem verão
o tempo é só um tecido vincado

vai ver a gente sempre esteve lá
no passado que não é passado
no começo do mundo e também no fim
você me salvando todos os dias
eu morrendo todas as noites

 

Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru-SP. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria contos. Em dezembro de 2019, lançou “179. Resistência” (poesias) também pela editora Patuá.

 

 

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