Janela Poética III

Milena Martins

 

Foto: Cristiano Xavier

 

Antes da queda é cárcere.

A comida não chega à boca
E o passado não chega ao hoje
Antes da queda.

É cárcere
Sangrando a carne nas grades.

Antes do salto da queda
É cárcere
Sob a tutela da incerteza da verdade.

Não saber é cela antes da queda.

Vieram as tochas, a fogueira.
Os versos condenados.
A morte de Hipatia pelo fogo e pela cruz.

Cárcere
Antes da queda.

E calou aos que buscaram gritar
O rastro de silêncio do carrasco.

Antes da queda, caíram as folhas,
Morreram os frutos,
Cortaram-se as línguas,
Nasceram os súditos.

Antes do nascimento é morte.

 

 

 

***

 

 

 

Hoje há meio sol lá fora
E um estrondo de antecipação.
É hora do risco.
Ponho sapatos apertados
E a dor é mais forte que eu.
Eu nunca fui muito forte.
Cada passo é um esquecimento.
Eu nunca fui muito forte.
Deixei a dúvida dentro do forno talvez ligado
E o propósito em cima da mesa.

Começou a chover no meio do caminho.

Eu nunca fui muito forte.

 

 

 

***

 

 

 

Alguém manteve o fogo
Depois que eu fugi.
Outros vieram continuar os trabalhos.
Eu corri até caírem as pernas
E rastejei uns metros mais.
Fui achada morta de bruços com os demônios presos às costas.
O fogo ainda arde na carne de alguém
Com o calor que eu temi um dia.

 

 

 

***

 

 

 

Não repara a bagunça.
É que eu enlouqueci de ontem pra hoje
E esqueci de guardar os sapatos.
As cartas acumularam pela metade,
As plantas morreram
E os pulmões agora doem.
A loucura chegou de madrugada,
Me achou sem defesa,
respirando entre os dentes.
E os cravou na carne dos meus braços
Como se eu fosse acordar.
E me bateu com os dedos no crânio
Como se eu ainda
Tivesse
Lágrima.
 

 

 

***

 

 

 

Eu machuco o som
Com as unhas.
Cada gota é um soluço.
Finjo-o num devaneio ruim,
Ferido da minha memória.
E só eu o conhecerei,
No escuro atrás dos olhos.
Morreu na garganta uma letra.
O mundo não terá
Esse castigo.

 

 

 

***

 

 

 

Cada desvio podia ser o último.
Eu tinha sopro demais.
Eu tinha gotas de mágoa,
Saltos de susto.

Eu já não conseguia olhar nos olhos
E nunca aprenderia a jogar.

E as décadas que vieram eram ainda futuro,
Que tudo pode enquanto não é.

O sopro se dissolveu em nota
E os aros ficaram vermelhos.
E a liberdade me caiu pelos ombros quando pude sorrir.

O jogo se acabou pela metade.
Ninguém ganhou.

Morreu o medo ao espelho.

 

Milena Martins  é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora dos livros “Promessa Vazia” (2011) e ”Os Oráculos dos meus Óculos” (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018). Publica poemas, fotografias e pinturas no perfil de Instagram @oraculos_dos_oculos. 

 

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