Anna Clara de Vitto
arrebentação
o mar
vindo desmaiar aos nossos pés
o sangue do sol se dissolvendo
nos beijos salgados d’água na areia
onde um olhar mais cuidadoso
desvendaria pegadas
apagadas
porém ainda minhas
procuro inutilmente
na fotografia recém tirada
um pedaço de felicidade
sobrevivente
***
atenciosamente
antes que os caminhos
desapareçam sob a chuva,
olha-me de perto
à luz das pedras, sou outra
olha-me mais uma vez:
ignora as lamparinas falsas
sou medusa vitoriosa
se não te pareço monstro,
olha-me de novo
mais sóbrio
***
qual o foco exato
do sismo definitivo?
qual a linha entre imensos
tectônicos?
qual a linha da vida
na palma das placas?
qual sua parte e
qual a minha?
seremos nós
a ameaça ao mapa?
***
a mulher sem mãos conta os dias
em comprimidos
e no crescimento dos fios de cabelo
diligentemente arrancados antes
do colapso dos sistemas de saúde
bonito é quando cicatriza — ela repisa
e se contenta: não sabe mais do passar das semanas
bonito é quando cicatriza — reprisa
e mede as horas nas unhas que se refazem
após os cortes programados
os minutos na tampa do dedo arrancada
durante o preparo do jantar
os segundos nas gotas do ansiolítico
e sobretudo nos mantras mentalmente entoados
enquanto a mulher sem mãos ensaboa
cotovelos
antebraços
punhos
palmas
parabéns-pra-você
enquanto isso
ossos expostos
sob a água pandêmica da torneira
inauguram
novo calendário
***
142ª
que cor tem o tempo ido?
salpicos que cirandam no fundo branco
retratos mortos de olhos postos
nas paredes à espera de retornos
na noite enorme do porto
cargueiros e transatlânticos
lançam preces aos práticos
amanhã
a certeza do sol
ao leste da orla
amanhã
não haveria chave
que abrisse a mesma porta
***
o olhar amansado
por pedras
as pedras
antes dos poemas
os passos
antes do caminho
eu ainda penso
eu ainda penso
eu ainda penso
penso nas pedras
e levanto o olhar com ânsia
para me certificar de que as pedras
ainda são pedras
já não tropeço
uma mulher entre pedras
vestia a camiseta:
“e agora
que você sabe?”
Anna Clara de Vitto (Santos/SP, 1986), é poeta e autora de “Água indócil” (Urutau, 2019) e MEADA (ed. da autora, 2019). Desde 2017, integra coordenação do Clube da Escrita para Mulheres, fundado pela escritora, cordelista e poeta Jarid Arraes. Possui poemas publicados nas revistas Ruído Manifesto, Mallarmagens, Germina Literatura, Plural, Fazia Poesia, Literatura e Fechadura, Escrita Droide, entre outras. Além das publicações esparsas, ministra oficinas de poesia e participa de saraus, performances poéticas, podcasts, leituras e mesas de debate.