Janela Poética III

Letícia Carvalho

 

Ilustração: Drika Prates

 

casa

para Maria Cristina

 

carregar até a porta dos fundos
os livros
as mensagens
todos os pensamentos em suspenso

sentar-se no batente
aproximar os joelhos do peito
mirar os pés do lado de fora

as patas que se aproximam
oferecer o rosto
e as mãos para carinhos
permanecer ali
falar com os cachorros e gatos

entender a razão daquele
ser o lugar favorito de sua mãe
na casa de Vila Isabel.

 

 

 

***

 

 

 

diário (2014 – 2018)

 

escutei os estalos de vidro
fotografei gente em automóveis
aprendi a desenvolver
bons raciocínios
mesmo que apressando o passo
pela Rio Branco
entendi o tempo
de se estar sozinha
em uma cidade grande
sinto saudade
daqueles ponteiros
por mais estranhos
que pudessem ser
seus arranhões.

 

 

 

***

 

 

 

pugilista heartless

 

eu pensei
nunca ser possível sofrer um golpe
digo
eu
nunca sofreria um golpe
com exceção do fatal
acredito
morremos em golpes.

eu sempre pensei
nunca ser possível sofrer um golpe
e permanecer
de pé ou sentada
com mais ou menos cabelo
com os olhos abertos ou fechados
com a boca seca
ou com saliva brilhante
com todos os balões
que habitam um corpo
ainda firmes.

é possível
sofrer um grande ou pequeno
golpe
perder os móveis da sala
os eletrodomésticos
o licor do avô
a coleção de imã de geladeira
o gosto pelos livros ilustrados
os melhores amigos
perder o colchão
as maçanetas do apartamento
os tapetes em que pisamos
e continuar aqui.

falamos do país e de golpe
certamente
em outros territórios
se fala em pancada e política
aqui também
trauma e economia.

mas a verdade
sempre tive a convicção
de nunca poder sofrer um golpe
eu mesma
apesar de já ter sofrido antes
(a memória se perde na lacuna exata entre um murro e outro)
dessa vez
repeti surpresa:
“não vi a mão ossuda chegando!”

 

 

 

***

 

 

 

a vista superior
da sua escápula
é onde nosso
gato
se aconchega
de manhã cedo
e também em dia de
trovoada
eu li que existe
um sentido figurativo
para esses ossos
apoio
esteio
como o fêmur
estirado em travesseiro
suporta todo
o meu peso
nos dias em que
fechamos as cortinas
para não ver
o dia virar noite
eu escondo vagalumes
pelo apartamento
como aquele retalho
bom de encontrar
na gaveta da sala
você tenta
um sorriso
de quem não tem jeito
para cortar cartolina
e nunca foi de chorar
mais do que nossos
joelhos
em queda no calçadão
o protetor solar
perdido
sua coluna tem algo
de triste
como os filmes
que assistia no
ensino médio
e gosto que você
combine perfeitamente
com os papeis de carta
que escolhi
para te mandar poemas
de amor
ou despedida
(as conjunções
quase sempre
permanecem)
mesmo que eu confunda
e deixe algumas
no envelope
sem correio.

 

 

 

***

 

 

 

Rio São Francisco

 

para Cely

 

a pequena carranca
que guardo ao lado
do bolo de contas amarelas
em um desaviso
pode parecer apenas um souvenir
mas cuido e encaro com precisão
essa companhia

você trouxe a miúda madeira esculpida
e mais alguns anos de sua vida
a amizade é uma proteção
envolve muito trabalho manual.

 

 

 

***

 

 

 

para planejar a tomada de uma casa

 

sua avó foi vista
na China do séc. XXI
com o casco fluorescente
os olhos vulcânicos

sua avó foi vista
no Haiti do séc. XXI
o alargamento das costelas
e da coluna vertebral resultou
no que hoje
é a sua casa

– botânica e política
concluíram que o perdão não é matéria de livro
esculpido em pedra –

esta casa que emerge
de água doce ou salgada
guarda em si
todas as substâncias do tempo
pode nos parecer eterna

é muito
para animais da terra
como eu ou você

o olhar penhorado de sua avó
caminha do céu até o fundo do oceano
sustentando a certeza de que nada retorna

de que não é possível sair ilesa
de tais eventos
extremos.

 

Letícia Carvalho (Barreiras, Bahia, 1994) é formada em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal da Bahia. Mora em Salvador, onde trabalha como educadora e poeta. Publicou seu primeiro livro de poemas em 2020, “eu devia ter visto isso chegando”, pelo selo editorial Paralelo13S. 

 

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