Janela Poética III

Rani Ghazzaoui

 

Ilustração: Drika Prates

 

Aorta

 

entendo pouco de anatomia
sei da distância dos meus dedos
da densidade dos meus pelos
de quando em quando vêm os meus respiros
em todos os meus apelos
observo meus músculos
ora robustos, ora murchos
o músculo rubro
que bombeia até todas as minhas veias
cada uma das minhas linhas
absolutamente todas
as minhas histórias
não entendo de biologia
mas sei o gosto das minhas lágrimas
a espessura da minha saliva
(ainda mais quando misturada noutra)
sei da minha matéria
sei conversar o amor
por culpa dessa artéria
que me inunda
que me transborda
não me interessam as outras partes
(preciso delas, mas não me são essenciais)
o que me importa é uma saudável aorta
robusta, potente, pulsante
esse túnel que leva a tudo
essa latejante porta
que me deixa sobreviver
que me previne de escrever
morta

 

 

 

 

***

 

 

 

O Pêndulo

 

se eu vier balançando
me fazendo de pluma
ou de pêndulo
por cima da crosta
deslizando
um tiro no escuro
gemendo
te peço que não me segure
que não abafe em mim
qualquer sentimento
não cerre meus punhos
nem imobilize meus membros
preciso de espaço
para ouvir a vida dizendo
deitar num abraço
(ainda que eu gostasse)
não funciona para quem vive
tremendo

 

 

 

***

 

 

 

Só Sei Saber De Mim 

 

não sou uma especialista
em coisa alguma
que não seja
relacionada aos meus próprios sentimentos
não sei construir prédios
as plantas da minha casa sempre morrem
coleciono desamores ao redor do mundo
os amigos que sobraram cabem nos dedos
não sou uma sommelier
de qualquer gosto
que seja assim
tão refinado
me finco nas certezas do meu ofício
de conhecedora das travessas de mim mesma
sei de cor a cor de todos os abismos
que moram dentro do meu peito
não tenho ambições além dos muros
pra fora da minha mente desvairada
jamais quis saber de outros edifícios
menos ainda de qualquer outra fachada
há muitos que usam a vida
pra juntar conhecimento
e saber de um tudo o que há
além das fronteiras do sujeito
eu que não sou mestre em nada
sento na frente do espelho
e num plano de vida traçada
vou decifrando a minha esfinge
do meu jeito

 

 

 

***

 

 

 

Amor E Literatura

 

Derrama em mim teus medos
Conta pra mim teus segredos
Ensopa-me com tuas lembranças
Penetra-me as tuas esperanças
Aloja em meu ventre teus sonhos
Permite-me gerar teus inconhos
Afaga aos meus problemas
Me deixa te escrever em poemas

 

 

 

***

 

 

 

Desastrosa Queda

 

se estamos nos matando
acontece a quatro mãos
em velocidade cronometrada
com capacidade mútua
de execução

sua boca presa à minha
não há registros de ar algum entrando
veias não bombeiam
nem oxigênio
nem sangue

se estamos no buraco
caímos aqui de empurrão duplo
tua mão na minha nuca
o meu pé na tua bunda
um tombo assim cinematográfico

 

 

 

***

 

 

 

Absorta, Semimorta

 

olho
para baixo
vejo meus pés
ensanguentados
já não sei
de quem é esse sangue
se vem de dentro de mim
ou se saiu de vasos seus

o azulejo branco parece pulsar
estamos à deriva
vivendo nesse mar de amar
desço minha mão com delicadeza
coloco o dedo no coágulo
e, antes mesmo de pensar,
levo meu dedo à boca

sugo
chupo
devoro

esse sangue que não sei se é meu
esse sangue que eu sei que é nosso

 

Nascida em São Paulo e naturalizada australiana, Rani Ghazzaoui é escritora, comunicadora, atriz e poeta. Começou a escrever muito jovem — “desde que conseguiu segurar corretamente a caneta” — como ela mesma diz. “Aorta” (Lyra das Artes), seu livro de estreia publicado em março de 2022, é uma antologia de poemas escritos num espaço de quatorze anos, entre 2007 e 2021.”Aorta” está à venda nas maiores livrarias do Brasil, em todos os e-commerces de livros e no formato Kindle através deste link.

 

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