Janela Poética IV

Madjer de Souza Pontes

 

Arte: Marcantonio

[estrema]

 

no poema não cabe a vida
é mais um talho preciso
que se grava em cada face
no crispar de cada ricto

uma coisa que essencial:
é de uma fratura a quota –
do laminar-se da faca
da alma ferida nas costas –

renúncia – por algum tempo –
da vida cotidiana:
é a reserva do silêncio
quando a voz tudo abocanha –

hiato eterno de relógio
com a medida que cresça
no pulso de cada homem
a liberdade que o expressa

 

 

***

 

 

[alheio]

 

o estranho se reconhece
no que de estranho em nosso olho
como quando um turvo espelho
cruza num outro o seu rosto:

face a face dois espelhos
gera-se mais um abismo
e sejam turvos ou limpos
não se calcula preciso:

é que num semblante alheio
pretendemos qualquer fim:
um reflexo que no espelho
soe semelhante há dois sins –

são dois mares desiguais
dimensão sob dimensão:
se água límpida ou toldada
mergulha fundo a visão

 

 

***

 

 

[outra parte]

 

dentro em pouco serei cinza
que volve ao leito primeiro
como se dentro de casa
duma vez puxado – inteiro –

ou o arcabouço de uma imagem:
restos de fotografia
para quem ali os visse:
é esse que há pouco vivia –

talvez só me reste o nome
quiçá dito em certa prece
que o precário que se deixa
tem o silêncio que merece –

ou nem o nome sequer
só uma coisa transparente:
como uns resmungos à noite
feito um eco inconsequente

 

 

***

 

 

[o poeta sonâmbulo]

 

cedo vieram bater à minha porta
perturbaram-me o já baldado sono
prenunciaram-me sem chances de fuga
tudo que pelo dia vário serei

na rua interrompe-me a cada degrau:
homens sedentos vasculham os bolsos
à procura de um ímpeto de vida
e sempre cedo – minha dor é cedo –

passeiam na confusão de meus braços
minhas mãos gravam seus sonhos em mim
e quando ausentes chaves recupero
é uma nota que incha na garganta –

a janela me abre à rua-do-dia-curvo
e o mundo afora me pesa no lápis –
mas quando me virem beijando a noite
permitam-me o delírio das essências

 

 

***

 

 

[truque]

 

logro: medida precisa
que no ouvido do traído
concretiza-se na língua
do paladar corrompido:

a fala dá um passo a frente
mas um passo cauteloso
que o ouvido do outro se feche
ao que o verbo leva no bojo –

e a palavra realizada
assenta pedras precisas
e quando o outro se depara
não credita ao passo ferida –

é dizer não como sim
ou sim embutindo o não
na balança o dito posto
a alma se põe noutra mão

 

Madjer de Souza Pontes nasceu na cidade de Pedra Branca, Sertão Central do Ceará. Editor da Revista Pechisbeque e da Editora Substânsia. “o núcleo selvagem do dia” é o seu primeiro livro de poemas.

 

 

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