Madjer de Souza Pontes
[estrema]
no poema não cabe a vida
é mais um talho preciso
que se grava em cada face
no crispar de cada ricto
uma coisa que essencial:
é de uma fratura a quota –
do laminar-se da faca
da alma ferida nas costas –
renúncia – por algum tempo –
da vida cotidiana:
é a reserva do silêncio
quando a voz tudo abocanha –
hiato eterno de relógio
com a medida que cresça
no pulso de cada homem
a liberdade que o expressa
***
[alheio]
o estranho se reconhece
no que de estranho em nosso olho
como quando um turvo espelho
cruza num outro o seu rosto:
face a face dois espelhos
gera-se mais um abismo
e sejam turvos ou limpos
não se calcula preciso:
é que num semblante alheio
pretendemos qualquer fim:
um reflexo que no espelho
soe semelhante há dois sins –
são dois mares desiguais
dimensão sob dimensão:
se água límpida ou toldada
mergulha fundo a visão
***
[outra parte]
dentro em pouco serei cinza
que volve ao leito primeiro
como se dentro de casa
duma vez puxado – inteiro –
ou o arcabouço de uma imagem:
restos de fotografia
para quem ali os visse:
é esse que há pouco vivia –
talvez só me reste o nome
quiçá dito em certa prece
que o precário que se deixa
tem o silêncio que merece –
ou nem o nome sequer
só uma coisa transparente:
como uns resmungos à noite
feito um eco inconsequente
***
[o poeta sonâmbulo]
cedo vieram bater à minha porta
perturbaram-me o já baldado sono
prenunciaram-me sem chances de fuga
tudo que pelo dia vário serei
na rua interrompe-me a cada degrau:
homens sedentos vasculham os bolsos
à procura de um ímpeto de vida
e sempre cedo – minha dor é cedo –
passeiam na confusão de meus braços
minhas mãos gravam seus sonhos em mim
e quando ausentes chaves recupero
é uma nota que incha na garganta –
a janela me abre à rua-do-dia-curvo
e o mundo afora me pesa no lápis –
mas quando me virem beijando a noite
permitam-me o delírio das essências
***
[truque]
logro: medida precisa
que no ouvido do traído
concretiza-se na língua
do paladar corrompido:
a fala dá um passo a frente
mas um passo cauteloso
que o ouvido do outro se feche
ao que o verbo leva no bojo –
e a palavra realizada
assenta pedras precisas
e quando o outro se depara
não credita ao passo ferida –
é dizer não como sim
ou sim embutindo o não
na balança o dito posto
a alma se põe noutra mão
Madjer de Souza Pontes nasceu na cidade de Pedra Branca, Sertão Central do Ceará. Editor da Revista Pechisbeque e da Editora Substânsia. “o núcleo selvagem do dia” é o seu primeiro livro de poemas.