Janela Poética IV

Inês Monguilhot

 

Foto: Luiz Navarro

 

Argos

 

A superfície das coisas pode refletir
de volta, concêntrico e ciclópico, o olhar.
Ou, desavisados, os olhos podem,
se não se mantiverem bem presos ao umbigo,
– sem tremular sequer um risco –
romper as superfícies como fossem água ou ar.
E, navalha ou navio,
perderem-se feito pedra
num oceano,
arrastados.

 

 

***

 

 

Antífona

(ao Señor de los temblores)

A tudo agradeço:
raízes,
espinhos,
escuridão,
a pálpebra cerrando o olho cego,
branco de caridade.

Cravos
escorrem largos das mãos;
a misericórdia serpentelínea,
de saia alvíssima.

Em mim os tambores,
terrores,
a carne fria,
uma auréola de suores.
O beijo rente a costela floresce
em descuidada ferida.

Perante a lei
.as  flores são santas e proclamam a inadiável ruína.

 

 

***

 

 

Compaixão

 

No claro de uma selva,
incerto tempo de monções,
um céu verde abre-se apaziguado
das findas luzes amarelas.
Mostra, alta, dissipados os vapores,
uma tigela branca, de arroz.

Ao pé de uma árvore
ele  terá avistado em outros tempos,
assim, solta na seda verde,
uma lua cheia, próxima, feito essa.
Num inspirar ou noutro, quem sabe,
tocou-lhe a falta
da samsara
e das dores humanas.

 

 

***

 

 

Diz a Lagarta a Alice

 

Escuta o germinar
das unhas aos céus, a lenta escalada.
Não, agitam-se as árvores
as setas verdes murmurando:
não se pode crer!
…..Corre nelas um alarido
…..contra o vento abusado,
…..contra tudo.

 …..E se pergunta a dama de copas:
 …..quanto é preciso marchar para permanecer?

Nesta hora,
se vier dar a teus pés alguma lisonja,
um trapo colorido, caco deste mundo sitiado,
deixa que sangre seu perfume, se tiver.
Não te curves, não o apanhes,
já não é.

 

 

***

 

 

…que tanto me doem rosas quanto espinhos…

 

Reis

 

Trancemos uma coroa,
das rosas que já se largam das mãos.
Trançaremos outras mais, mais adiante,
ao calor de outros verões.

Deixemo-nos  a ver-nos nas rosas,
ser carne de rosas.
Desejando, breves, os seus dias
e dar-nos por inteiro aos verões.

Coroas menos belas,
por mais que durem, todas  vão.

 

Inês Monguilhott nasceu em Recife, Pernambuco. Passou grande parte da vida na Paraíba e há mais de vinte anos reside em São Paulo. Publicou “natural” e “de mim”, ambos editados pela Ofício das Palavras.

 

 

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