Inês Campos
DIÁRIO
quase uma hora do dia primeiro
o bordado ainda sem forma
tiro a mancha do calendário
afundo na água sanitária
uma hora e meia do segundo dia
carícia nos dedos
os dedos no corpo
o desembaraço dos cabelos loiros
quatro horas do terceiro dia
e reconto o prazo
peço que diga sim
giro em torno do rabo
quase amanhecer do quinto dia
sem o rumo da palavra
sem o ponto ensaiado
com o medo
puxando o fio
ao contrário
***
ESCOLHA
com a cabeça e o desejo no meu colo
entregou-me o buquê e os espinhos da escolha
eu, depois, no cais
não me virei
ele, depois, contou até cem
à espera dos meus olhos ―
jogou cara e coroa e guardou sua vida
***
FICÇÃO
no tempo passado
o pão do domingo era o trigo
ou o corpo
e são bartolomeu se refugiou
com o terror na sua noite
naquele tempo quase inventado
a dúvida se esgueirava nas bainhas
embutidas na pele
no tempo masculino
cada animal da casa cumpria seu papel
atento ao punhal desembainhado
***
INVENTÁRIO
procuro as sandálias de minha avó
em corredores de ariadne
evito o porão e seus castigos
a obrigação de comer berinjela
encontro seu precioso caderno de receitas
a secreta preparação da delícia de ameixas
pergunto o que é meu
meu mesmo
daqueles grudados
***
SÃO PAULO DOS NÁUFRAGOS
checar os monstros do armário
o tigre debaixo da cama
os pés bem guardados
a estratégia para a fuga
as perguntas arquivadas
e a capa da invisibilidade
***
SICÍLIA
são as palavras
aquelas guardadas
ou as outras
ditas aos solavancos
fugidias
são os silêncios
que permanecem
templos antigos
mal restaurados
é a grama
que cresce
ao redor
em cima
dentro
Inês Campos nasceu em Belo Horizonte, onde vive ainda hoje. É poeta e advogada. “Geografia Particular” é seu primeiro livro, publicado em 2017 pela editora Cas’a’screver. Possui poemas publicados nas revistas Gueto, Ruído Manifesto, Germina, Acrobata e na iniciativa Mulheres que Escrevem. Atualmente trabalha na finalização de seu segundo livro.