André Merez
cromatografia da dor
Tudo isto é dor:
o que falta,
a miséria do mundo,
a miséria do homem.
As horas longas entre as luas,
uma luz absurda que absorve
a calma dos meus olhos vivos
e fia com uma agulha essa dor.
Sim, tudo isso é dor.
Toda essa cor de faltas
e de vazios, cor nada, cor nunca,
a cor incompreendida das horas.
Nenhuma cor em meus olhos
nenhuns olhos nesse rosto,
só uma dor perene sem cor,
só uma figura distorcida pela dor.
Próxima, inteira, latente e fixa.
Dor por ser dor em estado real,
aquilo que é acumulado aqui
onde não sei bem se o acaso
ou se a vida tratou de manter.
Porque a carne dói,
dói viver em silêncio,
dói a vida cotidiana,
quando escorre dos olhos a dor
e sua solubilidade
resulta em analito,
sem medida exata.
***
um dia vai alto
O dia vai alto
vai alta a rua,
ladeira longa que se vai
marcada no sem tempo,
memórias antigas,
varanda encerada
de chão vermelho.
Um homem sobe a rua,
um homem anda lento,
todo o seu corpo é sombra e alumbramento.
Casas olham indiferentes,
indiferente o calçamento
de pedra resiste ao vento,
nada é mais justo que o dia alto sobre a rua alta,
na ladeira alta em que um homem caminha lento.
Casas e pessoas se misturam,
vozes vindas de lá de dentro
anunciam um futuro estranho e cheio de dúvidas.
Fosse a vida só contentamento,
fosse tudo o que fosse esse pó
que vai cobrindo casas e pessoas na lida do tempo.
O homem ainda vai lento,
não há pressa. Todos os homens anunciam o dia alto.
É realmente um dia alto, dia pleno de acontecimento.
Sim, é um homem e suas pernas e braços e ventre
estão deslizando sobre as pedras desse calçamento.
Há silêncios e vozes no vento, misturados à rua alta,
misturados ao que um dia foi a rua
agora coberta de pó no sem tempo.
***
na última sessão do dia
Dorme,
dorme tudo o que se retira,
a fatia do dia, a faca, a fala
e o que é da vertigem real.
Dorme,
dorme o que queria, alçava,
a morte esquecida na tarde,
a triste tarde de sonolências.
Dorme,
Morfeu versado em Tânato,
esquece o dia, abraça a noite,
a sua mãe desesperada e fria
também dorme e, ao dormir,
alcança a eternidade desejada.
Como jamais se dormiu,
dorme todo, dorme inteiro,
fecha esses olhos definitivos,
encerra o mundo e seus ares,
encerra a fome de vida, a lida
e vai descansar de si mesmo.
Procura no sono absoluto
a absoluta ausência de si,
habita o longe, o longo e
vive esse mistério póstumo.
Medita, monge transfigurado,
na última sessão do seu dia e
no lótus perdido já reclamado,
dorme
………e morre
……………….e descansa
……………………………e mais nada.
***
do que é perdido
Mas fica esse silêncio,
o desdito, a ausência.
Fica o que não ficou
jamais entre as horas,
essas horas absurdas,
horas passadas a fio.
Fica o que nunca foi,
o suposto, imaginado.
Aquilo que seria mais
se não fosse passado.
Mas não foi, não era.
Ora ora, minha bela,
que dizer do perdido?
Que o jamais havido,
depois não se perde,
não há o que perder.
Nunca houve, não foi,
nem resto me restou,
nem o acabar acabou.
Nada,
ou quase nada,
só esse silêncio
ficou.
***
a fonte de Orides
para Orides Fontela
A fonte de Orides
seca
coberta de folhas
secas.
Resto do respiro
a um passo
do pássaro:
Orides resseca.
Deixa a tua mão
bater dura a tecla
-num tec tec tec-
de tudo um tanto.
Deixa, Orides,
que eu te engulo
como se engole
outra verdade.
***
Valor
Vazo de mim
e espalho-me
no chão seco.
Escolho olhares,
seleciono vozes,
avalio as dores.
Violentamo-nos
e tristes vamos
ao ato insensato.
Apenas o valor
esse ditador, e
sempre a injustiça,
essa triste puta,
seguem protegidos
à sombra do gigante
morto que putrefaz
na Avenida Paulista.
André Merez cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 18 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. Autor dos livros Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017) e Perfeição Acidental (inédito). Também teve seus poemas publicados nas revistas Mallarmargens, Poesia Primata, Gueto, Germina e Poesia Avulsa.