Janela Poética IV

Mírian Freitas

 

Desenho: Geometria da palavra

 

Instante

 

Mas para que serve o instante?
Na sobrevida do momento íntimo
flâmulas acesas chamuscam
no escuro da parede de tijolo cru
pavio insano aceso
entorpece os olhos nus
duas biroscas matizadas
no reflexo da luz e da sombra
–fotografia nas instâncias letais
do corpo—
infinitude
incompletude
o instante se faz ausente.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Solidão

 

Olhe para dentro,
há o turbilhão das vozes,
íntimas raízes, mortos que falam.
O solitário não fala, mente.
Traduz de si para si
o calendário da alma.
Dentro
–realisticamente–
ninguém
ninguém.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

À flor da pele

 

Labaredas da alma acesas
como fogueira incessante
a queimar os poros
as células viciantes do corpo
a vicissitude do instinto
o bojo dos lábios,
o fogo,
incêndio no pedestal da cabeça.
Fogo!
respira fundo,
o fogo nos ossos
a crepitar no instante do último fôlego.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

A Morte dos bois

 

Os bois antes de morrer, choram.
Cabisbaixos,
lagrimejam os grandes olhos
sabem que vão ser mortos.
A caminho do matadouro,
em fila indiana,
os mais delicados sussurram seu pranto triste.
Outros, ao berros, urram de medo
e desespero.

Quem, afinal, gosta de morrer?
Quem, afinal, vê na morte uma necessidade?

Sofridos, desalentados,
os bois choram.
Inútil chorar.
As algemas da morte estão atadas
não perdoam.

As lâminas afiadas cortam,
o sangue escorre.
Lágrimas, gemidos, sussurros tristes

de nada adiantam.
Morrer é preciso.
Morrer é urgente.
Os bois suportam o mundo.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Come in

 

Cultiva-te em mim as tuas mãos
como se fossem galhos apressados, firmes,
molhados pela doçura do orvalho noturno.
Despoja-te em mim teu corpo
como um barco náufrago, afogando-se
no pranto da multidão
no poço das águas revoltas.
Mergulha-te em mim como um peixe
a esfregar tuas escamas no meus pelos negros
insanos
— rebeldes–.
Transborda-te em mim como um líquido
assim,
gotejando em silêncio, sem dizer palavra,
apenas abraçando-me na mudez
como a planta que ama
sem necessitar do verbo.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Os que nascem em abril
comem maçãs vivas
enquanto pensam escuro lá dentro
na terra e nas folhas

relâmpagos sopram faíscas
luzes solitárias—vivas como os invertebrados,
além das luzes, o arfar do vento acende o termômetro
da vida pulsante
que não se atrasa para partir—.

Partir-se infiel a um outro
no escuro atrás das coisas
serpente nos olhos
–vibrantes— a vida no centro
submerge como os submarinos,

bolhas na água límpida flutuam espumantes
vozes indefinidas atrás das estâncias líquidas
naufragam o poema.

 

Mírian Freitas, mineira, reside em Juiz de Fora, doutora em Estudos de literatura (UFF), lecionou em Massachusetts,  EUA, por quase 10 anos e atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Autora de “Intimidade vasculhada” (contos- Editora 7  Letras/Imprimatur), “Exílios naufrágios e outras passagens” (poesia- Editora Patuá), “Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade”- no Prelo- (Ensaio), foi uma das autoras da Antologia Lusófona I (poemas- Folheto Edições&Design, Leiria- Portugal). Possui textos espalhados em  revistas como CP Literatura (Editora Escala), Revista Cult, blogs e sites de literatura como o Releituras, portal Cronópios e outros.

 

 

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1 comentário

  1. Amiga, seus versos são como gotas de pura sensates, profundas emoções e expressão da pureza de seus sentimentos.Amo!
    Gratidão por estar próxima

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