Janela Poética IV

Manuella Bezerra de Melo

 

Ilustração: Bianca Grassi

 

A pele, uma vez que habita o sal
assume posição protocolar de felicidade

Os povos dos trópicos são luminosos,
tem o coração cortado pela linha do Equador

Uma flecha acerta-lhes como alvo
e assim despejam-se nas águas mornas

O corpo em feridas que sangra se cura
se levanta em sal pra render a vida vindoura

Os povos dos trópicos são mumificados para que
durem milênios, tornam-se pais e mães de todos os povos

A pele, uma vez que habita o sal
assume o estatuto da eternidade

Espera o seu retorno
Esperam a chegada do seu reinado

 

 

 

***

 

 

 

Envenenei o céu pra que você
não visse morrer a segunda filha
o socialismo é um programa
é uma fenda no meu umbigo
é uma pasta de grão de bico
sob uma torrada com azeite
cancelei o café diário
que equivale ao suicídio sem extremismos
quantos estômagos são necessários
pra digerir a graxa que você passou¿
quantos fígados precisas
pra filtrar todo álcool necessário
de seguir viva?
Perguntam-me como estou?
efetivamente viva
por vezes, nem tanto
quase sempre
esta parte, omito
omissão é a caverna eficiente dos ineficientes
não se compartilha maledicências
dores amargores brotoejas
feridas abertas são constrangedoras
e já não há mais ninguém em condições
tenha selfies sorridentes e esbeltas
braços abertos, rei do mundo
as minorias se adequam
ou desaparecem

antagonismos a parte
o socialismo é um programa

 

 

 

***

 

 

 

soou-me o alarme às seis
soa tal o uivo de uma cadela
guindasteei-me na força de uma mãe
servi melão pão café leite
ele partiu porque filhos partem
e levou a matéria orgânica dos dias
esvaziei-me e vazia dei a mim
trinta convalescentes minutos
curei-me da morte numa pilha de pratos
uma típica manhã: caríbdis no inox

 

 

 

***

 

 

 

enxergo através dos muros
embebida em sangue vermelho
me afundo em sede espessa
enquanto passeiam gabirus
em fuga dos cozinheiros e serventes
com suas vassouras sujas
não interfi ro: observo acompanho
e
pra que não adentrem meus sonhos
cerro as janelas

 

 

 

***

 

 

 

Tereza olhou-me
meteu medo até em xangô
como um rio e seu poder
adentrou em mim
aventurou-se de mim

Nos olhos lustrados de Tereza
centelhas podem ferir

seu flanco não é mais o mesmo
não é mais do mesmo
seu flanco é todo ele meu flanco
meu flanco nunca será o mesmo
depois de suar sob o teu

pelo cabelo aproximei-me
ajoelhei, pedi uma benção

Tereza, isto é uma carta:
– Quero beijar-te agora.
Salva-me!

 

 

 

***

 

 

 

sobre janelas
e casas grandes
[coloniais]

desconforto é aquilo que se sente
quando cortam sua língua

desconforto é aquilo que se sente
quando te arrancam de uma zona
que você não planejou sair

território
ocupação
produção
distribuição

Liberdade é campo de batalha

todo corpo é uma
metáfora bélica

 

Manuella Bezerra de Melo é uma jornalista, investigadora e escritora brasileira residente em Portugal. Autora de “Pés Pequenos pra tanto corpo” (Urutau) e “Pra que roam os cães nessa hecatombe” (Macabéa), “Um fado atlântico” (Urutau) e “A Fissura” (no prelo pela editora Zouk), é organizadora e curadora da coleção de antologias VOLTA para tua terra de escritores estrangeiros. Pós-graduada em Literatura brasileira e interculturalidade (Unicap), é mestre em Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas (Uminho) e bolseira no Programa Doutoral em Modernidades Comparadas; Literaturas, artes e culturas da Universidade do Minho.

 

 

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