Julia Sereno
Barro
O céu laranja empoeirado
traz o deserto que meus pés
ainda não conhecem
para meu inverno particular
A areia do Saara paira
e move
deixando uma cor diferente
na minha pele península
***
Mulher locomotiva enlouquece
e esquece e repete e comete
um crime sem arma ou morte
apenas um ato ou seria
um pacto
de sanidade
com a própria
liberdade
Ela escreve
a mulher
***
Palavras puras
não existem
só com as híbridas
escrevo
e recito
os segredos
que desencontro
no caminho
***
Despertar
vento frio na pele
respiro sem deixar
o medo amanhecer
junto ao meu
despertar repentino
não sei se este dia
será como um dia
qualquer ou como
o outro que deixei
sem terminar
aquele que passou
horas a fio
desencapado
doendo pela
ponta que esqueci
de cortar
***
Um mapa
Fui nascida em dezembro, abaixo daquela
linha imaginária que corta o mapa
desenhado nos livros
por quem?
Fui ensinada a reconhecer as fronteiras,
mas depois aprendi que as bordas
desaparecem e se desviam do rumo
para onde?
Fui crescendo no território sem limites
dos meus medos e sonhos
misturados na geografia
de qual país?
Ainda não sei.
***
A minha revolução
acontece em silêncio
dentro do coração
e meu texto
busca derreter
os gritos congelados
que se forem ouvidos…
sinfonia
***
Aqui moram…
uma verdade que arruma a casa
e nunca recebe visitas
um desejo que deixo escondido
e esqueço de vigiar
umas dores de criança pequena
uns sorrisos de mulher adulta
e alguns livros que nunca li
Julia Sereno nasceu em 1978, no Rio de Janeiro, mas atualmente mora em Lisboa. Mestre e doutoranda em Estudos de Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ, é professora e tradutora. Em 2022, publicou seu primeiro livro, “As Outras em Mim”.