A PEQUENINA MORTE
Alice Macedo Campos
há uma hora em que uma pequenina morte vem até mim,
como uma flor que cresce timidamente no pathos da memória.
dir-se-ia que a pedra inteira do meu corpo
se atira completamente ao mar.
o buraco que o meu peso abre nas ondas é a âncora,
a concha invisível e segura, onde o meu ser mergulha no âmnio,
qual ínfimo peixe à procura de um ovo.
nesses momentos de pura distracção,
o pensamento é um olho autónomo,
fixado em qualquer ponto distante,
não exterior a mim.
onde estás, alice?, perguntam.
e eu não sei responder.
não sei se estou no lugar da lucidez ou da loucura.
gosto de sentir o movimento das ondas e boiar entre elas.
quando eu morrer,
tenho a certeza que esta flor me sai pela boca.
atirem-na ao mar.
***
a linguagem pára diante da mulher, corpo a corpo
se encaram e se entregam, as melhores palavras, as
que chegam em bandejas de prata, com a escama ainda
exposta, e o sangue, avançam como éguas, ouve-se daqui
o seu galope, deslizam na pele à velocidade dos meus pulsos,
e correm. estavam porém um espelho e a minha voz deste lado,
a luz claramente acesa sobre o medo, pronta a cegar-nos os olhos
e a boca fechada, a gramática impura dos amantes fez do verbo estar
um filme que acontece fora de nós, na paisagem e nos brilhos, onde a
música toca um instrumento tântrico que nos adversa, na hora de cantar.
***
(passam sobre mim os dias, extenuantes. o que sei é que
existir adquiriu um peso insuportável. visto-me de manhã,
e observo os meus gestos, como se outra mulher fora de mim,
ainda nua e ensonada, retivesse no seio a vaca da tristeza.
suponho que permanece no quarto, deitada na minha cama,
enquanto finjo, ou procuro a normalidade, até à hora de dormir).
(A poeta Alice Macedo Campos nasceu em Penafiel, distrito do Porto, Norte de Portugal. É licenciada em Gestão de Recursos Humanos e Psicologia do Trabalho. Publicou “o ciclo menstrual da noite” (Edium Editores, 2008), “um cão em cada dedo” (Incomunidade, 2010) e “a mulher sus.pensa” (Edita-me, 2011))
& a poetiza rói as margens de um mar
pendurado como brinco
em meus lábios