Nuno Rau
NOTA MARGINAL 37.
Instantes de maravilha que você captura, vertiginosas
lâminas de tempo em suas mãos, você não sabe o que fazer, seu dia
se perde no lixão que vaza dos calendários, cemitérios
de dejetos, ferros-velhos – mas a História
não acabou, nem a sua, se debatendo contra a pedra
(particular, intransferível) que obtura o peito
opresso sob a chuva fina e ácida do pensamento. Pensar,
pensar com os olhos
frios, enquanto na retina
se inaugura o caminho novo sob os mesmos
***
escrito sobre o corpo
leia se puder
o que segue escrito na carne dos dias
são signos sobre signos sobre signos
soterrando a possibilidade do sentido
mas leia
se puder arrancar o que lhe diz respeito
se puder arrancar a luz da floresta
de símbolos
se puder arrancar das linhas do fundo
escuro deste labirinto
desenhado nas dobras do corpo
não
você não
pode
***
NOTA MARGINAL 51.
Difícil acreditar na luz, ela
não é mais que outro lado
da treva: e mais que duvidar, você suborna
o coração com lances baratos, em surdina, até
que a iridescência perca sua autonomia,
em ciclos declinantes, sucessivos, como um prazer
ao contrário, bruto, até o chão. Deserto é tanto
o que sobrou quanto
o que estava antes, coalhado
de abismos escavados na planura. ‘Quem foi
que ergueu esta montanha aqui?’, ele disse quando galgou
ao cume, diante
da miragem do absoluto, o riso
apontando para onde o coração (‘deviam
inventar um nome melhor
pra estas deformações’, ela disse, ‘que se assemelham muito
a florações’) insiste
em construir cenários
imprevisíveis, andando rente,
tentando descobrir porque miragens nunca
reencarnam.
***
NOTA MARGINAL 54.
Curvar-se até o chão, diante
da inocência, ou mais além do pavimento
duro, se fosse tão gasosa assim
a matéria da alma que num ponto
nunca definido arranca um grito
ao ar quando atravessa os tais
dos campos vastos, triscando as balizas do tempo, lentamente
fingindo obedecer a relógios,
e neste empuxo
despenha-se junto a dias e promessas
só para aumentar os escombros e o monturo
a seus pés.
***
Daqui
a âncora é o corpo, o fundo
não se sabe Morto pela água
das décadas o Homem
-Aranha considera riscar
na areia fina com a ponta
em riste da última fratura
exposta o seu poema
mais abissal: vês? Ninguém
(Nuno Rau é poeta, letrista, carioca e leitor. Também é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ. Bloga em As Musas Pós-Modernas. Email: nuno.rau@gmail.com)