Janela Poética V

Casé Lontra Marques

 

Foto: Antonio Paim

 

O calor da nossa falta de hora

 

Foco na nuca da noite o calor da nossa falta de hora (desejando que a noite seja densa); quase estanco sua seiva — e deixo pingar das gengivas o acidente de uma voz. Os copos que caem, as pedras (ou cidades) que despencam não são mais os meus dentes. E daqui a pouco não sobrará muito o que engolir. Um dia, ouve. Um dia tudo aqui vai flutuar: um dia — será logo — a gente vai flutuar, simplesmente flutuar. Como a criança
que cresce
em mim (como a criança que
cresce
contra mim). Juntando
as mãos
nas amígdalas. Reencontro este limiar — jardim? fronteira? deserto? encruzilhada? — indiferente a qualquer pacificação. E apesar de toda a atrofia: reencontro este limiar (uma elipse; outra elisão) em que o acirramento
da linguagem
deixa marcas fecundas no corpo — deixa marcas (ou ventosas ou queloides ou asas) fundadoras de um corpo. Metalurgia
molecular: o corpo, a mulher que ainda serei
diz
para meus intestinos. O corpo testemunha a nossa inconsistência. Mas não só: o corpo — com seus sonos e suturas,
seus
pombos e praias — eletrifica o tempo quando nos expomos aos signos/sabores/sintomas das contusões (dos desconhecimentos) que não prevenimos
nem
promovemos. Não deflagramos
(não
delimitamos) porém
de
-batemos. Sem domesticar
a desorientação dos povos à volta ou
no
centro do deslumbramento. Do atordoamento por onde a gente distribui — dopa depois distribui — o suor
que
talvez se torne
fala.
Fome e
fala.
Fúria e
fala.
Ou
fenda ou farpa
ou
fagulha.

 

 

 
***

 

 

 
Nomear os sons na dissolução

 

Nomear os sons na dissolução
conserva
um pouco das sílabas ofensivamente estendidas

ao
espanto

inicial?

quase esqueço
o
que responder — enquanto nos arrastam —

até
o fundo

das retinas:

sustentando (pânico após pânico)
a
fabricação da apoteose

— minto —

da
metamorfose

corporal;

com
súbito prazer;

insisto:

assim
que o bulbo — depois de algum silêncio —
mas
antes do acaso;

assim
que o bulbo (o bulbo)

esfriar

no
asfalto:

acordaremos — ainda dentro da precariedade —
ao
redor dos poros: outra vez:

por
que logo

eu tentaria coibir

uma
qualquer

intrusão?

nascemos para a língua:
alertas
ao tempo — sem a exatidão da voz —
contra
essa espessa mudez:

nascemos
para o que nos ressuscita

— arremessando um rosto —

nos
cristais
da
cica

 

 

 
***

 

 

 
Também o apodrecimento incita à insistência

 

Também o apodrecimento incita à insistência
……….. (por mais
que procure
………..despencar do desalento)

Embora combalidos, não apodrecemos

……….. sobre
………..os gestos

com que perturbamos o tempo —

………..sobre
………..as frases com

que
consumimos

……….. o desconhecimento

……….. (as ruidosas
……….. referências convergem

………..para
………..o vértice que expõe

………..a vida
………..ao
………..ventre

………..de nossas vertentes)

 

 

 
***

 

 

 

As dobras das mãos

 

Terei uma única vertigem: um nome — desde o nervo — gravado na nuca, um nome formado por imagens colhidas ao largo de um ossuário (de vozes em que avultam vidas vociferantes): a paisagem que progride por horas íngremes: quando dorme — sem idade — os dias ardem sobre seu dorso como cristais de sal; adiante, o declive: chama-se o verão (provoca-se o exílio) com sons (entre ganidos) que o ladeiam — da mesma maneira que se ladeia um crânio — receando seu cerne: chama-se — o verão, chama-se o que desvia o curso do pulso: arquejante: deita onde há trauma, onde há tumulto — contamina a camisa, a água, a manhã, a palavra arrastada pela raiz:

tudo
quanto devemos

fazer
desaparecer: (pulsando):

dias
de cinzas

na
saliva?

Terei o crivo, a clave, o claustro de uma última crueldade: conservarei — por não saber controlar — a cratera, o cancro; conservarei o cancro no pulmão desta última crueldade: no pulmão — até então inesperado: porque, no nervo deste cancro, o diafragma expande suas malhas, seus planos, mastigando a cartilagem, a areia, a gangrena, a engrenagem de uma carne cáustica, até fermentar — nas ogivas das gengivas — um liame de misérias (cujas contorções obedecem, apesar da exaustão, a um programa de insuficiências que sustentam o sobreaviso, sem provocar, no entanto, sequer um princípio de precaução):

tudo
branco sísmico

espanto

(renascer): pulsando:

ogivas
de
dias

entre

mímicas

não

emitidas?

(Debruça a cabeça pacificada. Entrega os nódulos de magma incrustados entre as dobras das mãos cansadas de edificar armas com destroços de casas; entrega — junto com os nódulos de magma, junto com um embrulho de mãos calcinadas — a vigília coberta por camadas de cantos inúteis, de imagens engessadas, de ritmos diluídos, de falas despedaçadas)

 

 

 

***

 

 

 

Se a língua aprovasse

 
Se a língua aprovasse
apenas

os prazeres do desastre: o paladar

passaria
sem este esquivo

horizonte

— entre
vivido — no alvo

(compacto)

da
voracidade

(como um

aço

no cio

do

ácido).

 

Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Mora em Vitória, Espírito Santo. Publicou “Enquanto perder for habitar com exatidão” (2014), “Saber o sol do esquecimento” (2010) e “Mares inacabados” (2008), entre outros.

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