Janela Poética V

Ana Freitas Reis

 

Foto: Bárbara Bezina

 

Horas doces.
Um segredo, sem som, sem enredo,
Só silêncio segredado num espaço isolado,
Dentro a luz e movimento plano.
Nem um dano, nem um toque, nem uma dor,
O segredo revelador do que se tem suspenso, pontas de voo leve.
Sem greve, sem grave, sem agudos, Só os mudos que se querem em viagem de olhos abertos e fechados,
Sem machados, sem armas, sem pecados, só planície, só paisagem.
Horas de paragem.

 

 

 

***

 

 

 

O tempo suspenso do criador. Sabemo-lo do pássaro a elogiar a horizontalidade. Um gesto que amacia a possibilidade de um longo campo para fertilizar. Junto à montanha a urgência da geração. A homenagem ao minúsculo. O espaço da transformação. Como se apenas fosse necessário permitir que cada ponto pudesse encontrar o seu lugar entre os outros. Regressamos sempre ao encontro.

 

 

 

***

 

 

 

corpos emprestados
em roupas roubadas
de encontros furtados
entre mãos mentirosas
textos perdidos
em prazeres fingidos
bocas enganosas
entre sonhos adormecidos
lençóis mal lavados
em dormidas vazias
dos quartos alugados
entre noites vadias
radiografias marcadas
costelas partidas
pernas engessadas
carnes agredidas

 

 

 

***

 

 

 

Não quero nada mais óbvio do que os azuis de um céu escuro, do que uma casa abandonada e do que um livro que não se sai da capa. Não quero nada mais óbvio do que vozes de cigarros de prata, do que uma passadeira de memórias e do que ninguém que passa por essa estrada. Não quero nada mais óbvio do que uma janela partida, do que os ventos daquela despedida e da morte a assoprar no caminho. Não quero nada mais óbvio do que um carinho, do que ouvidos que se assobiam e de silêncios que não são óbvios.

 

 

 

***

 

 

 

O ser em contração
Sem combustão no interior
Devagar, bem devagar
Lento, bem lento
O calor
Dissipa-se pela luz
Cessa os movimentos
Fizeste de mim o ausente
Estou em vão

 

 

 

***

 

 

 

Vai
e vem
a morte
o ciclo
a espécie
tem contínuo
Norte
O ponto
O repouso

 

 

 

***

 

 

 

Sobressalto
Cada vez que os meus olhos amarrotados se fecham
O preto protege-me da luz
São camadas, muitas camadas.
A porosidade, a cor e a textura fazem parte do nosso solo.
Passamos por ele sem palavras.
Embaraço
Cada vez que os teus olhos espantados se abrem
No campo, a nitidez da profundidade e o encanto na cristalinidade da pedologia.
Esclareço-me
Cada vez que há olhos que se fixam na geografia
Perdemo-nos entre as cortinas meridianas maiores que o território.
Não consigo codificar porque
Distorcemo-nos
Cada vez que os nossos olhos se atravessam.

 

Ana Freitas Reis vive em Lisboa e é criadora. Cria programas de desenvolvimento de pessoas e poemas. É graduada em Psicologia pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Há 10 anos que é sócia-gerente da Progma, um projeto para o desenvolvimento de competências comportamentais, onde é responsável pela inovação dos programas e faz a coordenação e produção de espectáculos teatrais e programas de formação para outras empresas. Colabora semanalmente com o radialista Ricardo Mariano e o fotógrafo Alípio Padilha, no programa de rádio Em Transe, onde escreve parte dos seus poemas. 

 

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