Tito Leite
ETERNIDADE
A poesia é avis rara
num mundo raso.
A dúvida faz parte
de cada bago do poema.
O poeta trucida
o coloquial e seus oficiais.
Se o ofício do dia
é um batismo de sangue,
ele não teme as flores
dementes.
Se a lógica dos abutres
aponta para o óbvio,
o poeta agarra-se
ao mito que nunca morre.
***
MISERERE NOBIS
No gueto
chuva de anjos
caídos.
O telejornal toca
o contrabaixo
do apocalipse.
Cigarras bailam
na descontente
garganta do caos.
Poetas procuram
o melhor
atentado.
Matar
as harpias
que molestam
a alma.
A resistência
é um gato branco
numa noite
de blecaute.
Muitos pastores
um só holocausto:
Deus nos salve
de Deus.
***
CARTEIRA DE TRABALHO
para André Luiz Pinto
Folha de prata
que cai,
qual raiz no húmus
inferno capital.
Ínfima
renda per capita.
Todo dia
o mesmo esquartejamento.
Em lodo
o lobo rapina
o sol, bois
& relhas riscam
o pasto.
Não faltam homens
que comem feno.
Adão, tu ganhas
o pão com o suor
da tua tarde,
mas muitos dos teus
filhos comem
a nossa carne.
***
TEOLOGIA NEGATIVA
Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.
Sob o peso
da solidão
é o meu número.
Hoje a comarca não me compra.
Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.
Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.
Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.
***
GÊNESIS
Deus, como verbo,
é criação. Pecadores
são santos em potência:
universo em ebulição.
Antes do homem,
os peixes brincavam
nos grânulos da linguagem.
Celebramos o que nos falta.
A poesia é o brilho
de uma estrela
fora de época.
Em tempos implumes,
esqueço os dialetos
falados na Torre
de Babel e brigo
com homens e demônios.
***
REVELAÇÃO
Falta um afago
nas ruas
que pavimentam
as multidões.
Quando o artista briga com
a tirania do horizonte,
salta um sentimento
de beatitude entre os pulmões.
Vidas destroçadas:
desencanto
pelas metrópoles.
Dostoiésvski embriagou-se
do sermão da montanha,
lembra um teólogo,
diante da divina intuição:
o inferno não
é um lugar das almas
non gratae,
é a indigência de amar.
Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É curador da revista gueto. Têm poemas publicados em revistas impressas e digitais.