Janela Poética V

Tito Leite

 

Ilustração: Joana Velozo

 

ETERNIDADE

 

A poesia é avis rara
num mundo raso.

A dúvida faz parte
de cada bago do poema.

O poeta trucida
o coloquial e seus oficiais.

Se o ofício do dia
é um batismo de sangue,

ele não teme as flores
dementes.

Se a lógica dos abutres
aponta para o óbvio,

o poeta agarra-se
ao mito que nunca morre.

 

 

 

***

 

 

 

MISERERE NOBIS

 

No gueto
chuva de anjos
caídos.

O telejornal toca
o contrabaixo
do apocalipse.

Cigarras bailam
na descontente
garganta do caos.

Poetas procuram
o melhor
atentado.

Matar
as harpias
que molestam
a alma.

A resistência
é um gato branco
numa noite
de blecaute.

Muitos pastores
um só holocausto:
Deus nos salve
de Deus.

 

 

 

***

 

 

 

CARTEIRA DE TRABALHO

 

para André Luiz Pinto

 

Folha de prata
que cai,
qual raiz no húmus
inferno capital.
Ínfima
renda per capita.

Todo dia
o mesmo esquartejamento.

Em lodo
o lobo rapina
o sol, bois
& relhas riscam
o pasto.

Não faltam homens
que comem feno.

Adão, tu ganhas
o pão com o suor
da tua tarde,
mas muitos dos teus
filhos comem
a nossa carne.

 

 

 

***

 

 

 

TEOLOGIA NEGATIVA

 

Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.

Sob o peso
da solidão
é o meu número.

Hoje a comarca não me compra.

Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.

Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.

Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.

 

 

 

***

 

 

 

GÊNESIS

 

Deus, como verbo,
é criação. Pecadores
são santos em potência:
universo em ebulição.

Antes do homem,
os peixes brincavam
nos grânulos da linguagem.

Celebramos o que nos falta.

A poesia é o brilho
de uma estrela
fora de época.

Em tempos implumes,
esqueço os dialetos
falados na Torre
de Babel e brigo
com homens e demônios.

 

 

 

***

 

 

 

REVELAÇÃO

 

Falta um afago
nas ruas
que pavimentam
as multidões.

Quando o artista briga com
a tirania do horizonte,
salta um sentimento
de beatitude entre os pulmões.

Vidas destroçadas:
desencanto
pelas metrópoles.

Dostoiésvski embriagou-se
do sermão da montanha,
lembra um teólogo,
diante da divina intuição:

o inferno não
é um lugar das almas
non gratae,
é a indigência de amar.

 

Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É curador da revista gueto. Têm poemas publicados em revistas impressas e digitais.

 

 

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