Janela Poética V

Léa Costa Santana

 

Foto: Ricardo Stuckert

 

Urgência

 

Desistir enquanto há tempo e ensejo
Da casa sem frestas, das portas fechadas,
Das flores murchas e seus vasos quebrados,
De todos os domingos em branco e preto.

Desistir enquanto há tempo e ensejo
Das mãos que prendem sem nenhum abraço,
Das palavras mornas, do amor minguado,
Do sexo sem nenhuma estrela acesa.

Escrever cartas para o Papai Noel,
Fazer pedidos a estrelas cadentes
E aos santos meninos rezar novenas.

Aprender a pular as sete ondas do mar,
Construir torres e castelinhos de areia
Para neles se abrigarem as sereias.

 

 

 

***

 

 

 

Testamento

 

Ela bem sabia não fora amor.
Porém, casada. Por onde a coragem?
Não poucos lhe diziam: “É bom moço”.
Que pensasse nos filhos e no lar.

Ela bem sabia não fora amor.
Porém, calada. Por onde a coragem?
Era trêmulo o amarelo das dores
No recôndito do peito sangrado.

Ela bem sabia não fora amor.
Corpo tomado, rasgado, calado.
Os filhos distantes, partira o esposo.
Restaram as grades e os cadeados.

Ela bem sabia não fora amor.
Olhar tíbio, desejos sufocados.
Como ser corpo após tanto repouso,
Ferrolhos na voz, o riso guardado?

Ela bem queria ter sido amor.
Como bicho, como puta. Gozar
A liberdade de se prender ao outro
Em delírio: língua, dedos e falo.

Ela bem queria ter sido amor.
Como bicho, como puta. Gozar
As delícias do sexo sem pudores.
Amar sem limite, amar sem recato.

Ela bem queria ter sido amor.
Juiz impiedoso, amarelado,
O tempo, agora convertido em flores,
Espiava a urna a ser lançada ao mar.

Ré sem culpa, morreria de amor
Como bicho, como puta. Gozar
As delícias de se entregar ao ardor
Do corpo que para si resgatara.

 

 

 

***

 

 

 

Corpo calado

 

Por que tão tarde na rua?
– Ela desejava: era puta.

Por que tão curto o vestido?
– Ela provocava: era perdida.

Por que o rebolado e a cerveja?
– Ela queria: era rameira.

Por que tão feliz e risonha?
– Ela pedia: era piranha.

Estava sozinha a devassa.
Batom vermelho, talvez drogada.

No beco, no escuro:
Vestido rasgado,
Corpo violado.

– Puta, rameira, perdida!
Em deboche a polícia.

Na maca, às escuras:
Corpo sangrado.
Feto gorado.

– Acaso não merecera?
Em potestade a Igreja.

No túmulo, às claras:
Um corpo pálido.
Calado.

 

 

 

***

 

 

 

Urbanidades

 

A moça não parava.
Corria de um lado para o outro.
Arrancava os cabelos.
Dizia palavras desconexas.

Pintava-se de azul turquesa.
Pegava carona na lua.
Comia nuvens de algodão.
Brincava com os anjos do céu.

Era de vidro, de tons incolores.
Chovia lá dentro, no peito.
Alguém levasse suas águas.
Era o clamor da moça na rua.

Que se chamasse o padre.
Ela queria confessar seus pecados.
Que se chamasse a polícia.
Ela queria confessar seu delito.

A moça sangrava.
Franzina, quebrada.
O trânsito parado.
Todos absortos.

Fumaça.
Trinta e três.
A cola e os pivetes.
Meninos e meninas.

Picolés e chicletes.
Tesourinhas e bonés.
Um real.
Dois reais.

Sinal vermelho.
Pavor e medo.
Luzes apagadas.
Vidros fechados.

 

 

 

***

 

 

 

Escrevivências

 

Num canto da sala, estava Nininha.
Nunca, dos lábios, um som ou palavra
Para que se percebesse a menina.
Dizia-se: “Nascera muda, coitada!”

Tudo, porém, era voz em Nininha.
Os olhos choviam e as mãos sangravam
Inscrições da cálida pequenina
Nas mobílias e paredes da sala.

Pura maldade: ceifaram paredes
E queimaram a madeira mofada.
“Tragam papel!”, implorava Nininha

Para compor registro de segredos
Escondidos nas ruínas sangradas.
Narradora de enredos, a Nininha.

 

Léa Costa Santana é doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Especialista em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora de Literatura Brasileira da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Integra as coletâneas “Contos de Natal” (Lura Editorial, 2019), “Natal com poesia” (Biblio Editora, 2019), “Canarinho” (Porto de Lenha, 2019), “Toca a escrever” (In-Finita, 2020) entre outras.

 

 

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1 comentário

  1. Belos poemas!

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