Do amor e seus abismos
Por Rafael M. Fogaça
Quando um amor começa, nunca pensamos que ele pode acabar. Tornamo-nos tão envolvidos pelo charme, a beleza, a conversa, as promessas do alvo de nossos afetos que partilhamos com ela ou ele um tempo aparentemente situado fora da história, um tempo mítico em que experimentamos uma sensação intensa de felicidade. É durante essa suspensão do tempo que acreditamos ter sido bafejados pela eternidade: o amor não acabará jamais. O universo mítico, porém, é habitado por deuses, heróis e outros seres extraordinários. Como a condição humana nos torna seres enredados na história, tudo em nossa existência sujeita-se a um processo marcado por início, desenvolvimento e fim. Somos perecíveis.
Pode-se dizer que O amor é um abismo furtivo, novo livro de contos de Adriano de Paula Rabelo, é composto justamente por histórias sobre a perecibilidade do amor ou histórias de desamor. Nas oito narrativas que o compõem, o autor mostra como este sentimento tão decantado e tão aspirado por tantos de nós se desgasta e se desfaz. São histórias às vezes tristes, às vezes carregadas de ironia e humor, escritas em linguagem clara e fluente, com parágrafos curtos e frases precisas, sem malabarismos retóricos a sobrecarregá-las. A propósito, vale a pena prestar atenção nas diversas formas que os contos assumem. Alguns são compostos à maneira tradicional, com apresentação linear do entrecho num só bloco narrativo. Outros se apresentam na forma de um quebra-cabeça de mensagens telefônicas trocadas pelos membros de um casal, marcações das etapas do desenvolvimento de uma relação ao longo dos meses que ela durou, mini-histórias de amor reunidas numa coletânea representativa de variadas separações, o fim de um amor apresentado pelo crivo dos dois ex-amantes.
Se em Desabraçar, seu primeiro livro de contos, Rabelo utilizou apenas o foco narrativo em primeira pessoa, com o protagonista relatando e avaliando eventos nos quais tomou parte, agora há uma mescla dos dois pontos de vista clássicos, com algumas histórias sendo contadas em terceira pessoa. Isso acontece quando o narrador busca maior objetividade. Entretanto, esse narrador é sempre modesto, nunca se mostrando onisciente a ponto de saber o que se passa na interioridade dos personagens.
Outro fato notável é que os textos do escritor se tornaram mais extensos, com mais detalhes e mais desdobramentos, apesar de seguirem buscando uma concentração expressiva que valorize o essencial em termos do enredo, ritmo e linguagem.
O brilhante conto que abre o volume, intitulado “Penicilina”, é muito significativo das qualidades técnicas do autor, bem como da comoção sutil provocada por seus textos. Com linguagem depurada de construções frasais empoladas e de vocabulário exibicionista, Adriano Rabelo põe em cena uma mulher de 34 anos e um homem de 33 que viveram juntos um marcante primeiro amor durante sua adolescência, numa cidade do interior. Possuidora de grande talento intelectual, ela prometia se realizar como profissional de sucesso na idade adulta. Ele, por sua vez, se possuía uma inteligência mais limitada, tinha aptidão para os esportes. Quando o rapaz deixa a cidade natal para frequentar uma universidade na capital, em pouco tempo eles encerram um relacionamento que lhes proporcionou as experiências fundamentais – a primeira experiência amorosa, as primeiras experiências sexuais, planos entusiasmados para o futuro –, ficando muitos anos sem se encontrar. Quando ele volta ao interior, por ocasião de um problema de saúde do pai, os ex-namorados se encontram casualmente. Acabam tendo uma frustrada noite de amor. Eles mesmos não são mais nem sombra dos adolescentes promissores que foram um dia. Em meados de sua terceira década de vida, não realizaram nada do que suas capacidades prometiam. Frustrados, ele volta para a capital, a fim de retomar uma vida e um trabalho que não o satisfaziam, e ela permanece no interior, a cuidar sozinha da filha que teve num casamento fracassado. Dias depois, porém, ambos começam a sentir os sintomas de uma blenorragia. Vão ao médico, se tratam com a penicilina do título, e cada um pensa que a doença lhe foi passada pelo outro, num prolongamento ainda mais melancólico do desfecho de sua história. Ao final, saímos com a sensação da mais absoluta fragilidade dos laços afetivos que estabelecemos com outras pessoas, por mais que acreditemos na resistência do amor aos efeitos do tempo e das transformações na sensibilidade dos amantes.
Desde o seu primeiro livro de contos, numa espécie de antirromantismo de forma e fundo, o autor vem primando pela criação de personagens reais num mundo real, reduzidos a sua estatura humana. Trata-se de apresentar ao leitor uma fatia da vida humana nestes tempos inseguros em que vivemos. Em certo sentido, por sua fixação em aspectos pungentes da vida real, Adriano de Paula Rabelo tem se mostrado um escritor de “pouca” imaginação. Se a força de sua literatura tem se sustentado justamente em personagens e situações reconhecíveis na realidade, recortados no que têm de mais significativo, eu gostaria de testemunhar sua imaginação expandindo-se a ponto de ponto de retratar seres e mundos para além destes que encontramos todos os dias em nossas casas e nas ruas da cidade. Esta é talvez a única restrição que se possa fazer aos rumos que o escritor vem dando a sua criação literária. Lembremos que mesmo um Flaubert mesclava trabalhos mais colados à realidade, como Madame Bovary e A educação sentimental, com outros mais imaginativos, como Salambô e A tentação de Santo Antão, ampliando o espectro de sua criatividade.
De todo modo, dentro do que Rabelo se propôs fazer, este seu novo livro de contos realiza-se como uma evolução em relação a Desabraçar, publicado há dois anos, e parece anunciar, para breve, voos mais altos e mais ousados do autor, que já está maduro para a escrita de romances.
Por fim, vale uma observação sobre essa nova literatura brasileira de autores mais jovens, lançados por editoras pequenas. Justamente por não produzirem para o mercado literário, tais autores, que vêm publicando alguns dos trabalhos mais interessantes da literatura brasileira contemporânea, encaram as letras como uma manifestação do espírito, não como uma carreira. Daí a preciosa liberdade que possuem para experimentar com enredos, linguagens, temas em ebulição no momento. As reuniões de contos em torno de um tema específico, que têm sido marca das criações de Adriano de Paula Rabelo, contêm essa liberdade, embora utilizada somente até onde ela contribui para a força de sua expressão. O amor é um abismo furtivo mostra um escritor em plena evolução para obras que em breve terão um público e um reconhecimento maior, em virtude de suas qualidades. Quem viver, verá.
Rafael M. Fogaça é mestre em Estudos Literários pela Unicamp.
Contos muito bem escritos, sempre comoventes. Gostei especialmente de ‘Domingo, no fundo’. É extraordinário. Adriano de Paula Rabelo é uma grande promessa da literatura brasileira.
Muito bom, mas meio pessimista.