Tallýz Mann
Arquitectônica
Essas paredes brancas
tangíveis e mudas
haverão de tergiversar
sobre o futuro do mundo
Cal e superfície
na fundação permanente
de faces nebulosas
ocultai vossas fissuras!
Padecerão atônitas
vendo tão necromantes
esporófitos e poros
anunciarem o fim dos tempos
E ainda temerosas
ouvirão o (com)passado
líquido invasivo
a corroer a matéria das certezas
Orbe de destruição
contra a face insuspeita
por dentro a fisionomia
a máscara atravessada
À ruína anunciada,
fragmentos orgulhosos
cantam a supremacia
das paredes brancas
e suas texturas
ultrapassadas
***
Terraplanário
Extinguiu-se a órbita
do geoide farsante
nessas ilusões geométricas
de bestas quadradas
a Verdade virá
Fomos todos precisos
à beirada do mundo
e caímos nos abismos
abismados da constatação
Planos sinistros
na planície terrestre
planaram proféticas
anunciações
jamais em nenhuma circular
Esféricos delírios
postos à prova
pelo incrível
homem Chato
Compacto
nivela todos os seus
à mesma superfície
***
Lembre-se de não viver
Desinstalar a vida
já que a morte
não nos constrange
e nada do que ficar
será nenhuma lição
apenas acumularemos
ossos frios e apatia
a certeza da crueldade
de um rebanho irascível
pisando firme
na borda do abismo
Desinstalar a vida
já que a morte
é nossa rotina
e jantamos na sala
com o cheiro de defuntos
devotos devorando
a carne podre do salvador
Desinstalar a vida
já que a morte
é o que capitaliza
e toda nossa ruína
é a ferrugem
que corrói
a efígie de prata
***
Radícula
Laboras a terra
doando de si
tudo em solo e ternura
Revolve pedras
e guarda seixos
pavimento de caminhos
sinuosos
Dança das raízes
no absoluto desejo
ramagens violentas
intromissão e segredo
Aragem promissora
pois deita as sementes
envoltas de futuro
Tão logo rompe
numa brecha arriscada
broto vacilante
dizeres de planta
utopias sazonais
***
Aquarius
Sombras da morte
noite dorida
sob corpos já cansados
atados vigilantes
guardam as portas
dos templos de outrora
tão poucos esperam
vivos e resilientes
nascituros da aurora
Um raio de luz
pois age certeiro
gume radioso
ferindo espessa escuridão
Faz ansiar pelo dia
banha os espíritos inquietos
na trilha do tempo
ritual da memória
Deságua na força do ser
águas de outros riachos
aquosa revolução
tudo destrói e cria
na dinâmica do mundo
animal que crê e luta
***
Liturgia das Horas
Para meditar ao som
de Ventura Profana
Dayse
por aqui se fechou tudo
os goles de concreto
descem rasgando
a garganta
& dilata-se
cotidianamente
a abertura ao horror
Dayse
por aqui se queimou tudo
terra bruta e quente
na qual nenhuma raiz
rizoma ou sortilégio
passará pela brecha
Dayse
por aqui se aniquilou tudo
com palavras de benevolência
que aninharam
serpentes sacerdotais
chocadas no ninho
do Pai Eterno
Dayse
por aqui se viveu pouco
choveu sangue massivo
retinto, pobre, dissidente
desembocando
na voz da violência
Dayse
por aqui ainda se luta
quando uma trava
desce o morro
para sovar o pão
nosso de cada dia
& o reparte
com as outras
discípulas do sangue
& corte
Tallýz Mann é uma byxa-travesti não-binária, natural de Jussari, cidade que fica no litoral sul baiano. Licenciada em Letras Espanhol/Português, é Mestra e doutoranda em Letras pelo PPGL: Linguagens e representações, da UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz). Atualmente tem pesquisado sobre as escritas de si de autoras transvestigêneres brasileiras contemporâneas. Escreve versos desde os nove anos. Participou de antologias poéticas e recentemente publicou PoemAtos & outras: inscri(a)ções (2023), pela editora Patuá.