Janela Poética VI

 

Pintura: Sylvana Lobo

 

CASULANIMUS

Floriano Martins e Viviane de Santana Paulo

 

descortinamos a sombra avulsa que mastiga o sol     faminta por entre os monturos
da tarde     surge nas vértebras do tempo uma nuvem de abismos
estática da agonia que não se comunica com seus vultos abandonados
feixe de evasivas     o pavor diante da pilha de cenários vazios     a cidade
regurgitando a própria memória como último recurso para evitar a asfixia     mas
o cansaço reveste os corpos de desamparo     e as esculturas perambulam pelas
galerias sem ninguém
no chão o ruído de madeira reclama as tiras das frestas que atam as cenas
germinando lentas     diáfanas     tendo que relutar
contra o espaço desabitado dos cenários      recolhem o movimento imperceptível
dos sentimentos
nos fios das travessias     emaranhados como um casulo na curva da clavícula
tecemos nossa ausência com as fibras das garoas finas
caída nas costas do crepúsculo     são corpos que mudam de lugar    cruzam as
artérias de um mundo desolado
enlutam os cabides gastos pela melancolia     escrevem os nomes trocados para
confundir a dor
há muito que reúnem as estações para pequenos tragos na madrugada     quando
revivem as imagens desfeitas     e destacam passagens incongruentes da
narrativa de suas vidas incomuns
sedimentando desvios nos fósseis da ressonância urbana
as pernas sonâmbulas dos sonhos no branco do teto deixam marcas longas e
frágeis de nervos de folha desgastada de verão    devoram as cicatrizes
rudimentares de umas poucas utopias que rastejam por monturos     cartazes
aniquilados     detritos surpresos     orquestração de misérias
fomos descortinando a pele dos desgastes     tateavas um palimpsesto aqui     eu
mascava uma imagem putrefata ali     a memória não alcançava o dia seguinte
perdemos a história
já não sabemos em que tempo conjugar os verbos

 

 

***

 

MASCARALVO

 

a noite e o problema confinado     jogo de despistar o solitário
noite de sexo sem a coroa de estrelas     não te conhecem as cigarras     o bafo quente
…..das sombras macias
somente as silhuetas dirimidas no breu     dissolvidas as cores do dia na saliva da boca

para dizer que tudo se esvai     mas permanece este delírio
arrancar a ilusão do duro das paredes
buscar as amarras     o equilíbrio das gotas de chuva no limiar do arame     na ponta
…..dos espinhos
minto carnavais e feriados     noite de sexo sem a purpurina vermelha     sem a pérola
…..branca
o estranho gosto do amor na boca amanhecida com atraso
lençóis rachados como os lábios do deserto de teu olhar   contrariar a roupa ao vesti-
…..la
gemidos entranhados entre a meia e o sapato     não te vás     não me sigas
o sol se retrai indeciso sobre o disfarce que usará
a janela se espreguiça com um gato decalcado em suas vértebras
o mundo não vai a parte alguma     nem sei ao certo quem és
rumino as penumbras dos gestos e algo quebra a casca fina da manhã gelada     onde
…..as primeiras luzes surgem indiferentes     inventam o cotidiano no gargalo dos
…..recintos
imperturbável na hora do despertar
nascem os corredores de reflexos     matizes promissoras e lembranças viajantes que
…..vagueiam no vasto do dia que vem sem ti
e precisamente onde não estás recupero o que houve de melhor entre nós
e o faço entornando a jarra de felicidade com que sei que nada voltará a se dar

 

(Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, editor e ensaísta. Dirige a Agulha Revista de Cultura. Entre os livros mais recentes, se encontram Autobiografia de um truque” (2010) e Susana Wald – La vastedad simbólica” (2012))

(Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Integra as antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007)

 

 

 

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