Eduardo Lacerda
Pomba-gira. ou do Apocalipse
Para Alessandra Cantero
Um pouco a dormir, um pouco a cochilar;
outro pouco deitado de mãos cruzadas, para dormir.
(Provérbios 24:33)
Não me lembro bem
quando cruzei
as pernas
pela primeira
vez.
/Talvez os corpos
aprendam
com
os seus extremos:
É impossível
(pedindo)
cerrar os punhos
cruzando os dedos./
Sei que sempre, e
antes, já cruzava
os braços com
alguma
habilidade.
Cruzar.
O corpo é indeciso
com seus vários
defeitos.
O corpo, e seus
muitos medos
contraindo-
se sobre
-si
mesmo.
Este é o momento final
(apocalipse
do corpo)
a que chegamos
em pecado:
cruzar o amor
ao corpo
do ser
amado.
***
A Última Ceia
Há regras à mesa
como em um brinquedo
de quebra-cabeça.
/ E eu não entendo
os dispostos à esquerda
dos pais.
Restos do pequeno
que sentavam ao meio
da mesa (como prato
que se enche
e procura lugar entre
as pessoas). /
Já não me encaixo
depois que aprendi
a olhar de lado
e sair por baixo.
***
Desistência
Como à cama há pouco tempo
nos olhávamos em silêncio
hoje, nossos ossos, esqueletos
encaram-se, em paralelos.
Comungados da mesma hóstia
repartida e azeda / dois exércitos
negros, iguais, porém divididos
por um mesmo tabuleiro
: o ódio
, encarnando-se por este alimento
toda parte de um corpo
tanta carne sobre
ossos
que a vida é quem nos indaga:
– Ainda haverá sangue?
/ a tristeza
é que
na vida não se
pode,
como no jogo
o roque /
***
Por um Fio
Para Aline Rocha
Esta pálpebra revela,
quando se fecha, que se
ajoelha ao que deseja
e se curva ao que espera.
Ela não vê, está cega.
E ainda que esfregue
os olhos, ela mesma
não se enxerga.
ela esconde, de sua retina
que se arregala,
e brilha (como cortina
que uma festa encerra)
tudo aquilo
ao que se destina.
O seu destino.
(ela está presa, pele
cárcere que se repete
Sísifo.)
/ Carrega em sua cabeça
cada peça do que pede:
tímida como quem reza. /
Cruza os dedos, arranca os cílios.
Ela realizará à força
o que é pedido,
mas parece promessa
Chora?
É um cisco.
(Eduardo Lacerda, autor do livro de poemas “Outro dia de folia” (Editora Patuá), nasceu em Porto Alegre, mas vive em São Paulo, cidade que ama, desde os dois anos de idade. Cursou Letras na Universidade de São Paulo, mas não concluiu o curso. Como um legítimo geminiano, também não conseguiu concluir nada até hoje. Atualmente, é coeditor da Editora Patuá, onde acredita que livros são amuletos. Tem poemas publicados em revistas eletrônicas e impressas. Não se considera poeta. Sua paixão, editando, é fazer nascerem livros e poetas)
Eduardo,
A imagem paradoxal roçando o Paradoxal da Vida: naquilo que se “apreende na encruza, no cruza-descruza” [e esta é uma Pomba-Gira de Lei, por certo…], ou no abrir-fechar da pálpebra que “se arregala no encolher-se”. E a última imagem remete à primeira, sendo o círculo uma das visibilizações do paradoxo.
Sua poética se esmera em dar figurabilidade às pontas do nó [quando já atado].
Abração!