Janela Poética VI

Eduardo Lacerda

 

Foto: Silvio Crisóstomo

 

 

Pomba-gira. ou do Apocalipse

Para Alessandra Cantero
Um pouco a dormir, um pouco a cochilar;
outro pouco deitado de mãos cruzadas, para dormir.
(Provérbios 24:33)

Não me lembro bem

quando cruzei

as pernas

pela primeira

vez.

/Talvez os corpos

aprendam

com

os seus extremos:

É impossível

(pedindo)

cerrar os punhos

cruzando os dedos./

Sei que sempre, e
antes, já cruzava
os braços com
alguma

habilidade.

Cruzar.

O corpo é indeciso
com seus vários

defeitos.

O corpo, e seus
muitos medos

contraindo-
se sobre
-si

mesmo.

Este é o momento final

(apocalipse

do corpo)

a que chegamos

em pecado:

cruzar o amor

ao corpo

do ser

amado.

 

 

***

 

 

A Última Ceia

 

Há regras à mesa
como em um brinquedo
de quebra-cabeça.

/ E eu não entendo
os dispostos à esquerda

dos pais.

Restos do pequeno
que sentavam ao meio

da mesa (como prato
que se enche
e procura lugar entre
as pessoas). /

Já não me encaixo
depois que aprendi

a olhar de lado
e sair por baixo.

 

 

***

 

 

Desistência

 

Como à cama há pouco tempo
nos olhávamos em silêncio
hoje, nossos ossos, esqueletos
encaram-se, em paralelos.

Comungados da mesma hóstia
repartida e azeda / dois exércitos
negros, iguais, porém divididos
por um mesmo tabuleiro

: o ódio

, encarnando-se por este alimento
toda parte de um corpo
tanta carne sobre

ossos

que a vida é quem nos indaga:

– Ainda haverá sangue?

/ a tristeza

é que

na vida não se

pode,

como no jogo

o roque /

 

 

***

 

 

Por um Fio

Para Aline Rocha

 

Esta pálpebra revela,
quando se fecha, que se
ajoelha ao que deseja
e se curva ao que espera.

Ela não vê, está cega.

E ainda que esfregue
os olhos, ela mesma

não se enxerga.

ela esconde, de sua retina
que se arregala,

e brilha (como cortina
que uma festa encerra)

tudo aquilo

ao que se destina.

O seu destino.

(ela está presa, pele
cárcere que se repete

Sísifo.)

/ Carrega em sua cabeça
cada peça do que pede:

tímida como quem reza. /

Cruza os dedos, arranca os cílios.

Ela realizará à força

o que é pedido,

mas parece promessa

Chora?

É um cisco.

 

 

(Eduardo Lacerda, autor do livro de poemas “Outro dia de folia” (Editora Patuá), nasceu em Porto Alegre, mas vive em São Paulo, cidade que ama, desde os dois anos de idade. Cursou Letras na Universidade de São Paulo, mas não concluiu o curso. Como um legítimo geminiano, também não conseguiu concluir nada até hoje. Atualmente, é coeditor da Editora Patuá, onde acredita que livros são amuletos. Tem poemas publicados em revistas eletrônicas e impressas. Não se considera poeta. Sua paixão, editando, é fazer nascerem livros e poetas)

 

 

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1 comentário

  1. Eduardo,

    A imagem paradoxal roçando o Paradoxal da Vida: naquilo que se “apreende na encruza, no cruza-descruza” [e esta é uma Pomba-Gira de Lei, por certo…], ou no abrir-fechar da pálpebra que “se arregala no encolher-se”. E a última imagem remete à primeira, sendo o círculo uma das visibilizações do paradoxo.

    Sua poética se esmera em dar figurabilidade às pontas do nó [quando já atado].

    Abração!

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