O dizível e o indizível na peça Tom na Fazenda
Por Vivian Pizzinga
Tom na Fazenda, do premiado autor canadense Michel Marc Bouchard, tem montagem inédita no Brasil, com excelente direção de Rodrigo Portella e idealizada e traduzida pelo ator e produtor Armando Babaioff, que encarna o personagem que dá nome ao título (Tom à la Farme, no original). O texto, traduzido em diversos países, ganha esta primeira versão no Brasil, trazendo a história de Tom, que vai ao funeral de seu companheiro, na fazenda onde sua família mora, e, lá chegando, descobre que sua mãe não sabia que o filho era gay, além de nunca ter ouvido falar em Tom. O irmão, Francis, que vive dedicado ao trabalho rural e à mãe, devotando suas preocupações primeiras ao bem-estar dela, não apenas sabe do segredo, como exige a dissimulação de Tom, e tem início uma história de mentiras que vai se tornando cada vez mais complexa. O espetáculo, em cartaz no Oi Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, ganhou temporada de 23 de março a 14 de maio.
Essa primeira montagem de Tom na Fazenda é uma das peças mais impactantes que tive oportunidade de ver nos últimos meses, brilhante no texto e na sua adaptação para o português, com atuações magníficas do elenco, sendo difícil destacar alguém em especial, uma vez que todos têm seus grandes momentos, todos roubam juntos as cenas e, portanto, ninguém tem a cena roubada, uma espécie de jogo em que cada ator oferece ao outro um pouco da cena, um verdadeiro trabalho de entrega da equipe, que precisa ter, de fato, corpo (literalmente) e energia para estar ali, no palco, defendendo belíssima trama.
Kelzy Ecard, que interpreta a consternada e um tanto quanto bruta Ágata, a mãe dos irmãos, é comovente quando ouve de Tom o conteúdo da suposta conversa com a igualmente suposta namorada de seu filho morto; Gustavo Vaz, que dá corpo e voz ao irmão Francis, e que inicialmente mostra-se personagem assustador para, aos poucos, demonstrar aquelas nuances clássicas das quais nos esquecemos e que nos lembram que não há ninguém inteiramente bom nem ninguém inteiramente mau, que, com sua inequívoca dificuldade de expressar afeto vai aos poucos angariando a empatia do espectador (mas também do próprio Tom, apesar das violências e das ameaças sofridas); Armando Babaioff, incrivelmente devotado ao protagonista que encena, oscilando, sem escorregar, entre a conversa falada com os familiares do companheiro morto e a conversa mental consigo e com o personagem ausente; e, finalmente, Camila Nhary, que faz Ellen, aparecendo mais para o fim da peça e trazendo humor em sua participação, quando finge não falar português e traduz literalmente para o inglês expressões e termos que não têm cabimento naquela língua. Sim, estão todos excelentes, e a emoção com que atuam é tão contagiante que parece impossível não se deixar contaminar pelo impacto desses afetos.
Mas não só a atuação é irretocável, como a trama é muito bem montada, do ponto-de-vista psicológico inclusive. Afinal, o que temos? Um funeral. Mote clássico que é ponto de partida para uma série de enredos, muitas vezes ligados a revivescências de histórias antigas, a nostalgias múltiplas e, noutras vezes, sendo o ponto de virada na história de personagens ou na forma como compreendem partes de si e do mundo. Tom na Fazenda, no entanto, parte do funeral para não apenas trabalhar os tabus referentes à homossexualidade, sobretudo em um contexto provinciano como é o rural, onde todos se conhecem e os segredos são um luxo de vida curta, mas também para desencadear uma rede de relações de dependência e afeto difícil de colocar em palavras.
Ao falar de luto e de melancolia, a psicanálise sempre trabalhou e buscou compreender a vivência de perdas e sua dinâmica no psiquismo humano. A pessoa que vai embora, que nos abandona, que some, que se separa de nós, mas sobretudo a pessoa que morre, mote de Tom na Fazenda, de algum modo é internalizada por aqueles que o amavam. E, quando isso acontece, acaba encontrando espécies de ganchos em outras pessoas, da vida real, que guardam alguma semelhança com aquele que se foi. Talvez seja um pouco por essa pista que possamos tentar nos aproximar da complexa relação entre Francis, Tom e Ágata. Esta última identifica em Tom características do filho morto, como, por exemplo, o perfume. Nada mais íntimo do que o cheiro de uma pessoa, e ao identificar em Tom o cheiro do filho, e também sua educação, Ágata coloca uma parte de Tom no lugar vazio deixado por ele, tanto que é na cama deste que o convidado irá dormir, encaixando-se direitinho no espaço que o outro ocupava. É assim que Tom dá alguns passos na direção de um lugar especial nessa relação com Ágata, tanto que, sutilmente, ele passa a ser protegido por ela e, mais à frente, chega a chamá-la de “mãe” porque “ela gosta de ser chamada assim”.
Francis, por outro lado, apesar do ressentimento, do ódio, da dificuldade de processar a sexualidade do irmão, também reconhece características deste em Tom. E se impressiona com sua delicadeza com as vacas da fazenda e sua habilidade verbal. Francis, extremamente solitário por ser visto como se fora um bicho pelo resto da cidade e, talvez, pela sua própria mãe, que não consegue abraçá-lo, vai, então, estabelecendo com Tom, através inicialmente da violência física, uma aproximação afetuosa que ele tem dificuldade de administrar. Mas, claro, trata-se aqui de um afeto tenso, sempre pronto a irrupções limítrofes, onde a dor e as possibilidades são testadas ao seu máximo. Parece ser assim que Francis funciona e, com isso, vai criando admiração por Tom, por ele ridicularizado inicialmente. Tom, por seu turno, também está absolutamente só, dado que perdeu a pessoa que ama, e continua se comunicando com ela através do smartphone, mandando áudios ou mesmo conversando mentalmente com o ex-companheiro. E nada mais próximo desse amor do que o irmão dele. Tão próximo, tão parecido e, ao mesmo tempo, tão distante. Mais ainda: tão solitário, como o próprio Tom. Todos os personagens se confundem uns com os outros e todos carregam um pouco do personagem morto.
É essa teia complicada de perda, lutos e afetos difíceis de serem expressos que os vai tornando estranhamente dependentes uns dos outros. Uma dependência permeada de violência física, que faz com que o trabalho de coreografia, assinado por Toni Rodrigues, e preparação corporal, assinado por Lu Brites, sejam essenciais, pois os personagens brigam, rolam, caem, brincam, dançam, embolam-se, e o palco, em cenografia de Aurora de Campos, é escorregadio, com plásticos, terra e alguma água, tudo em tons amarronzados que lembram, de fato, o meio rural, com seus baldes e cordas.
A direção musical, de Marcello H, também consegue inserir a música em sua justa medida, em nenhum momento atrapalhando a fala dos atores ou sendo redundante. Ao contrário, nos momentos em que existiu, ela foi fundamental. A cena em que Francis e Tom dançam é um exemplo desses.
A iluminação de Tomás Ribas também merece ser destacada, com lembrança especial para o momento em que Tom fala sobre a experiência de participar do parto de um bezerro. A dramaturgia dessa cena específica e a luz avermelhada parecem sublinhar um momento de passagem, espécie de iniciação do protagonista citadino na vida rural e, neste caso, mais selvagem, através do contato com o sangue e as vísceras, e da participação direta nos fenômenos da natureza, tidos como mais reais do que todos aqueles vividos anteriormente, até a chegada à fazenda. O nascimento do bezerro parece ser também uma metáfora do renascimento de Tom, agora completamente inserido na vida da fazenda e da família de Francis e Ágata. Ele começa a se tornar um igual.
Há, enfim, diversas questões que a peça suscita (há um quê de incesto que não se realiza, mas sempre no ar, na forma como Tom vai se tornando o irmão de Francis e o outro filho de Ágata?) e muitos momentos belíssimos, como aqueles em que os personagens sentam na beira do palco, para confissões íntimas entre si, mas cujo posicionamento, mais próximo da plateia, parece deixar claro que a confissão é também conosco, espectadores. São momentos em que parcelas da humanidade mais oculta dos personagens nos são oferecidas com generosidade. Mas há também diálogos absolutamente excelentes, descrições das cenas que acontecem na cabeça de Tom cuja dinâmica é genial, e um final cuja força não fica atrás do arrojo que perpassa a peça inteira. No dia em que tive a oportunidade de assisti-la, os aplausos pareciam não acabar mais. E, enquanto eu aplaudia, tinha lágrimas nos olhos. Mas é preciso fazer coro com os atores. Então, lá vai: “prefeito, pague o fomento”.
Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.