Jogo de Cena

A verve provocativa de The so-called outside means nothing to me

Por Vivian Pizzinga

 

Cena da peça “The so-called outside means nothing to me” / Foto: divulgação

 

 

No palco, quatro jovens mulheres, vestidas com roupas largas, nada sedutoras, dividindo-se em emanações de uma mesma personagem, Minna, jovem isolada por escolha, em um apartamento num dia entediante. Relacionar-se com o mundo exterior – the so-called outside –, com o que há fora do apartamento, com o que há fora de si, implica muito desgaste: ficar o tempo todo balizando o que se diz com o que se pensa, medindo os parâmetros vigentes em uma dada cultura com a vida que caminha fora das capturas ideológicas, quaisquer que sejam; ficar ainda regulando o politicamente correto que, entretanto, é estrangeiro face aos pensamentos espontâneos mais genuínos, verificando a adequação do que se sente àquilo que se pode sentir, do que se pensa àquilo que é considerado pensável, ao que é aprovado socialmente, ao que está na moda, ao que é vanguarda ou, por que não?, ao que é sustentável. Essas constantes verificação e regulação são extremamente cansativas e perturbadoras. A personagem, dividida em quatro, prefere não. Este é o cerne em torno do qual começa a girar o sensacional The so-called outside means nothing to me, que teve apresentações no Cena Brasil Internacional, em junho de 2017, nos palcos do Teatro I do CCBB-RJ.

Há um cerco de emoções, esperas e questionamentos que se erige ao redor das quatro atrizes e delas emana. Trata-se de quatro moças que fogem aos padrões de beleza mais rapidamente identificáveis: usam óculos, têm cabelos emaranhados, nada lisos, não são magras nem fazem um uso sedutor do próprio corpo, não estão maquiadas. O cenário é desprovido de objetos ou quaisquer outros dispositivos que sirvam de atenuantes de tudo o que se passará ali, de tudo o que será dito, de toda a tradução corporal do texto bem urdido. O chão e a parede são pretos, não há matizes. A iluminação dá sinais de que inexistirá como elemento estético, uma vez que tudo começa em clara luz, com as pessoas ainda terminando de encontrar seus lugares na plateia, apesar de o toque da campainha que indica o início próximo do espetáculo já ter soado. É quando entram as quatro mulheres jovens, olhando com desconfiança para os espectadores, semblante de poucos amigos, suspeita sem disfarce algum, ausência deliberada de simpatia.

 

 

Foto: Guto Muniz

 

 

O espetáculo é dirigido por Sebastian Nübling e coreografado por Tabea Martin, e o texto, brilhante, carregado de uma inteligência provocativa, com senso de humor e ironia, é da premiada escritora alemã feminista Sibylle Berg, autora ainda de 13 romances, 21 peças, e possuindo grande projeção na Alemanha exatamente por sua característica provocadora. A nítida e quase palpável provocação de seu texto não traz, no entanto, um incômodo indigesto. É possível rir de si mesmo, quando o si mesmo é retratado da forma como o é em The so-called outside. O humor é, definitivamente, a melhor forma de provocação. E o que é mais interessante no espetáculo é que a dramaturgia e a coreografia acompanham a verve provocativa de Sibylle Berg: elas logram êxito em traduzir para os movimentos e expressões corporais tudo o que está sendo dito ali, através da linguagem verbal.

As atrizes que incorporam (com toda a literalidade do termo incorporar, pleno de corporeidade em seu paroxismo) todos os tensionamentos e solilóquios infinitos da personagem central pertencem ao The Maxim Gorki Theatre, que desembarca pela primeira vez no Rio. Trata-se de um dos mais politizados teatros públicos da Alemanha, tendo sido destruído durante a Segunda Guerra Mundial e reconstruído e reaberto em 1952, e cuja companhia tem um elenco fixo e multiétnico de 17 performers e um grupo paralelo composto exclusivamente por artistas imigrantes. Na apresentação carioca do espetáculo, temos Cynthia Micas, Nora Absdel-Maksoud, Rahel Jankowski e Suna Güler.

Pode-se dizer que o texto é feminista por colocar em xeque uma série de aspectos esperados do que deveria ser viver como mulher, sentir como mulher, fazer coisas de mulher, ter hábitos de mulher, vontades de mulher, pensamentos de mulher. Entretanto, e isso é o mais interessante, para trazer sua crítica contumaz, o texto não precisa do subterfúgio de atacar o homem, como se a questão toda se resumisse a dois polos opostos e necessariamente conflitantes. Não se refere ao homem ou ao gênero masculino como “macho” (ou algum equivalente) usando um mesmo tom de agressividade e ataque que denuncia no homem machista quando este se refere à mulher menosprezando-a exatamente por ser mulher. No feminismo de The so-called outside, a mulher tampouco será poupada. E esse é um dos grandes achados do espetáculo: os questionamentos vão muito além da denúncia que assinala as desigualdades de gênero. Há toda uma análise muito bem-humorada, cheia de boas sacadas, divertidíssima, das contradições e chatices da sociedade capitalista na qual vivemos. E sociedade capitalista são palavras que, unidas, podem soar aqui como militância lugar-comum, repletas de significados prévios e vagos, que guiam para um entendimento perigosamente rápido do que o espetáculo propõe, mas, ao elegê-las, estou apenas sendo fiel àquilo que o texto traz e que inclui também a própria crítica à crítica ao capitalismo e seus excessos sem nenhum recurso a fórmulas óbvias. Não, não há nada de óbvio no espetáculo. Porque as mulheres que estão ali se contorcendo, pulando, aglutinando-se, cuspindo água, jogando-se ao chão, gritando, cantando musiquinhas românticas da Whitney Houston e outras, simulando o grande encontro amoroso e utópico que, elas sabem, nunca vai existir na realidade tal qual na imaginação, essas mulheres estão também rindo de si mesmas e de suas agruras, e sobretudo das estratégias, sempre falhas, sempre inócuas, que são levadas a criar, cotidianamente, para fazer face a essas mesmas agruras.

 

 

Foto: Guto Muniz

 

 

Um exemplo disso é o momento da aula de zumba, em que uma das quatro atrizes fica dançando, separada das outras três, como se tivesse chegado ao grau máximo da felicidade, da euforia que serve de panaceia para os males da alma e do coração, mostrando que a melhor forma de lidar com a ansiedade, com as frustrações, é a aula de dança, é a agitação incessante do corpo, continente maior de desvarios emocionais.  Não há maniqueísmo no texto de Sibylle Berg, dado que tanto a pressão para o consumo e para a acumulação típica dos modos de vida capitalista (e que incluem – ou podem incluir – as aulas de zumba, as aulas de yoga, as meditações transcendentais) são alvos do texto ácido da autora, como também o politicamente correto. Novamente, é preciso insistir: não há fórmulas prontas e pré-fabricadas em The so-called outside.

Um dos dilemas trazidos pela personagem é que Minna está apaixonada por uma amiga, Lina, que volta e meia manda um SMS. Toda vez que há um SMS para ser lido, a personagem apaixonada tem que usar uma série de subterfúgios para conter sua euforia e sua expectativa, para não se deixar levar pela ansiedade extrema. Ela quer e não quer ler, ela quer ler mais tarde para mostrar a si mesma o quanto é forte e o quanto não está desesperadamente esperando uma resposta de Lina, mas ela não resiste e, toda vez que o celular apita o SMS, Minna dá o que promete ser uma olhadinha rápida, e as mensagens da amiga sempre falam de alguma relação com outro homem, do que ela sente ao lado desse outro homem. É aí que Minna terá que encontrar maneiras para lidar com isso. Os recursos corporais e dramatúrgicos do espetáculo são a melhor expressão do desatino de Minna. Só mesmo os grunhidos, as caretas, os gritos, os pulos, só mesmo a torção de caras, bocas e corpos em uma verdadeira coreografia da repulsa e do desdém forçados para traduzir o que Minna sente. Para dar conta de expressar o insuportável.

E, no decorrer do espetáculo, a luz vai se apagando, acompanhando uma espécie de anoitecer do dia de Minna, quando há um recrudescimento da angústia que ela, de todas as formas, desesperadamente, tentara tapar. É nesse momento que, após uma correria insana pela vida, retratada em pensamentos obsessivos, por um dia que passeou por questionamentos inúmeros acompanhados de brutalidade e indignação, que ela vai se dando conta de que é jovem e o mundo, para quem é jovem, para ela, começa amanhã. Será?

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *