Abismos entre ética e moral
Por Vivian Pizzinga
O espetáculo Rose tem texto de Cecilia Ripoll e foi eleito como a melhor dramaturgia escrita durante as atividades da turma de 2017 do Núcleo de Dramaturgia SESI cultural (Rio de Janeiro), coordenado por Diogo Liberano. A direção de Vinícius Arneiro, excelente, e a atuação do elenco, à altura do texto, dão vida a esse drama que tem um viés político com moderação, no que diz respeito às questões mais abrangentes de distribuição de renda e desigualdade social (sem ser panfletário, sem ser chato, sem ser didático e sem ser raso) e a fatos específicos da política nacional. É sempre o ato, o gesto e o acontecimento que norteiam o viés político que a peça carrega, necessário e na justa medida, com lances de humor que os atores, conferindo personalidade e trejeitos a seus personagens, ajudam a construir (vide Ângela Câmara e sua afetação para sentar na cadeira, ou Márcio Machado e a voz empostada quando interpreta o deputado ou seus falsos brios quando assume a função de novo diretor da escola a moralizar o espaço escolar onde a protagonista trabalha).
Rose é merendeira de escola pública e sofre vendo que a comida não é suficiente para as crianças que lá estudam. Além disso, a comida que vem é inconsistente, o feijão é ralo, a qualidade não é boa. As crianças sentem fome. Então, ela começa a adoecer e tira licença, indo trabalhar na casa de dona Celina, sem carteira assinada, protegendo o filho da patroa e mantendo sua filha escondida no quarto. Rose é um mistério para esse filho, curioso com a porta fechada de seu quarto e com as banhas da funcionária. Maria Juliana, a filha de Rose, interpretada por Natasha Corbelino (cheia de carisma), é uma figura à parte. Sua indignação por ter de ficar escondida e pelas desigualdades que observa com perspicácia, como a comida que sobra e vai fora após as festas no apartamento e a comida que falta na escola onde Rose é merendeira, expressam-se em uma mistura engraçada de sarcasmo e cinismo. Para completar o elenco, há ainda o diretor Renato, que expressa a contradição entre o legal e o legítimo, ou a moral e a ética: nem tudo o que é legal é ético ou legítimo e vice-versa. Isso fica evidente no diálogo que ele tem com Rose sobre a estratégia (clandestina) utilizada pela protagonista para resolver o problema da merenda na escola.
O espetáculo vai num crescendo, como se um percurso para que os absurdos explodam e aconteçam fora do terreno da sutileza e se escancarando como deve ser necessitassem mesmo de um processo, de certo metabolismo: há várias relações acontecendo paralelamente, núcleos de tensão e afeto são despertados como se pequenos mundos que ora se afastam, ora se tocam e diversas vezes se interpenetram durante a trama. Há certo hipnotismo do menino (atuação de Thiago Catarino), que tem medo de descansar e morrer, pela filha de Rose, e todas as emoções que transbordam desse afeto inédito para ele. Há a estratégia de Rose para fazer justiça e levar comida da casa de dona Celina para a escola e o desconforto moral (e desprovido de ética) do diretor da escola, que usa todas as oportunidades para exercer e demonstrar porções fartas de demagogia, dramas tolos e falsos dilemas. Há a incomunicabilidade de dona Celina com seu filho, o pavor do toque e do abraço, a distância que se alarga entre eles e, por outro lado, encurta entre ele e Rose. Há o ciúme da filha de Rose e, finalmente, a preocupação de dona Celina em agradar o deputado que desvia merenda, na festa em sua casa, em paralelo ao ódio de Rose em relação a ele.
Entre outras possibilidades que a peça oferece para discussão e produção, temáticas variadas que margeiam a questão principal, o cerne é mesmo de doer: afinal, ninguém acha ruim o suficiente o desvio de verbas públicas que seriam destinadas à merenda escolar, mas se torna questionável uma funcionária levar a comida que sobra da festa da madame para as crianças da escola. Ninguém acha ruim o suficiente porque, se fosse suficiente, já não seria possível continuar acontecendo. Mas Rose, a quem Dida Camero empresta brilhante atuação, protagonista que não tem papas na língua, acha ruim o suficiente e não espera que outros venham resolver o problema da forma que se apresenta diariamente diante de seus olhos, em um sofrimento ético capaz de adoecer qualquer trabalhador que estivesse em seu lugar.
Os paralelismos desdobram-se: num apartamento de 400 metros quadrados, o quarto da empregada tem 4 metros e é ali que a filha tem que ficar o dia inteiro. Esse é o território que lhe é destinado: o espaço é escasso, a comida é rala, há uma classe que recebe sempre menos (e não se trata de maniqueísmo barato, a realidade é exatamente essa). O aluno da escola pública não pode provar salmão e a empregada não pode querer fazer curso de inglês: isso poderá soar absurdo (o salmão na boca do pobre) ou se tornar risível (o inglês na boca da trabalhadora doméstica).
Finalmente, o cenário é também ótimo e simples: diversas carteiras escolares são posicionadas como numa sala de aula, e é por entre elas, sobre elas, por baixo delas, desviando-se delas e as embaralhando que as cenas vão acontecendo. A maneira como as cadeiras são posicionadas e reposicionas e ajustadas e novamente deslocadas se torna uma pequena expressão do caos e do cinismo que se alternam no palco.
Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.