Entre ciúme, encontros e desencontros
Por Vivian Pizzinga
“O quereres e o estares sempre a fim/ do que em mim é de mim tão desigual/ faz-me querer-te bem, querer-te mal/ bem a ti, mal ao quereres assim”, como diz Caetano Veloso, em O quereres, poderia ser uma música que logo nos vem à cabeça quando assistimos ao espetáculo encantador Contos partidos de amor. Isso porque o espetáculo vai tratando, de modo cheio de beleza, perspicácia, filosofia e humor, das incongruências, dos encontros-desencontros-reencontros e novos desencontros, do vaivém de afetos em que o amor se dá, em que se cria, mas no qual se esvai, por ciúme, por “carência” (novo sinônimo de ciúme), controle, insegurança e outras palavras que nem fazem parte do texto do espetáculo e são especulação da autora da resenha, mas que, certamente, fazem o recheio das histórias que ali se passam.
O sedutor e, em alguns momentos engraçadíssimo, sobretudo no começo e nos percursos em busca de uma fita azul perdida, Contos Partidos de Amor é um musical infanto-juvenil de 60 minutos para mães, pais, tios, avós, irmãos mais velhos, crianças, meninada: o texto, eu diria (e gosto de texto), é absolutamente genial. Não vai ter adulto que não o ache sensacional, pelas fantásticas jogadas de palavras que traz e que explicam tudo, ou melhor, permitem que a plateia se aproprie do que está sendo dito sem, necessariamente, precisar conceituar cada coisinha (que talvez fosse o mesmo que explicar uma piada ao final). Aliás, fala-se disso na peça: a metalinguagem que é típica de um casal discutindo sobre a sua discussão ou sobre sua (in)capacidade de comunicar-se. Sobre a conversa interrompida ou interrompendo-se no diálogo para situar cada senão, cada vírgula, cada silêncio, cada detalhe que gere detalhes que gere interpretações de detalhes e que, infinitamente, leva a desvios enormes de comunicação.
O texto, que é de Eduardo Rios, inspira-se na obra de Machado de Assis (1838-1908) e, associado à belíssima direção e ao roteiro de Duda Maia, fica à altura do criador de Capitu e o ciúme terrível de Bentinho, no paralelismo possível entre dramaturgia e literatura. Encantamento é o que acontece logo que o espetáculo começa, com a iluminação excelente de Renato Machado, que faz toda a diferença na peça inteira, dando cor e vida às cenas e às temáticas (mais avermelhada nos momentos de apaixonamento, mais amarronzada nos momentos de tensão, e às vezes azulada, outras, esverdeada), o figurino de Kika Lopes, que se utiliza do branco para dar mais vigor à luz e aos corações apaixonados que se colam no peito dos personagens, além de algo infantil que permite a identificação com o público mais jovem, fazendo referência, ao mesmo tempo, a certo eterno aprendizado do amar, do relacionar-se, do desapegar-se, do respeitar-se etc, e, finalmente, o belo cenário de Diogo Monteiro. Para não perder o fôlego (isso que peça e atores têm de sobra e demonstram logo de início), começo nova oração para dizer que o cenário se utiliza de grandes corações acolchoados (ou dando essa impressão), feitos de fuxicos, que, pendurados dos lados direitos e esquerdo do palco, somando 6 em cada lado, dão a atmosfera de paixão que o espetáculo requer e dando livre espaço para a rica movimentação dos atores e a presença de rosas e instrumentos musicais no palco. A trilha sonora original e arranjos de Ricco Viana e as canções de Eduardo Rios e do próprio Ricco são belíssimas, dando humor, lirismo e certa descrição de momentos embaraçosos das emoções, da falta de comunicação e dos sentimentos. Contos Partidos de Amor até poderia também se chamar Contos Partidos de Ciúme, temática que permeia as histórias que se imbricam na peça, a partir de dois contos de Machado de Assis.
O espetáculo esteve em reestreia no Rio de Janeiro, tendo passado pelos CCBBs de SP, Brasília e BH, ficando em cartaz até 16 de dezembro. Foi premiado nas categorias de Melhor Direção e Melhor figurino no 12º Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil – 2017/2018. As inspirações principais para a dramaturgia de Eduardo Rios foi o poema Círculo Vicioso e os contos “A história de uma Fita Azul” e “To be or not to be”, este último da coletânea Contos de Amor e Ciúme, que Gustavo Bernardo organizou, pela Editora Rocco.
Já o elenco polivalente (a polivalência, na arte, é sensacional, mas em outras profissões é um horror, que fique o parêntesis) está muito bem e ensaiadíssimo, porque erro, nem que eu quisesse encontrar, não haveria (como não houve): Diego de Abreu, impagável nas apresentações do início da peça, Isadora Medella, Luciana Balby e Tiago Herz, que são também, os quatro, cantores e músicos. Ricco Vianna, com sua trilha sonora ora instrumental, ora de músicas cantas e tocadas ao vivo pelo elenco, tem, em uma delas, inspiração no poema “O Verme”, em que Machado descreve o ciúme como “um verme asqueroso e feio”, publicado em Falenas (1870). Nem tão bom na poesia como foi na prosa (ficcional e crônicas sensacionais), Machado de Assis não deixa de ser memorável até mesmo no campo literário que não lhe era o melhor. Para quem gosta do autor, é possível perceber palavras que permeiam a obra do escritor e que ficaram famosas, como o uso do adjetivo “oblíqua” para descrever, no caso do espetáculo, uma boca, “na verdade torta, cheia de porquês”, como diz a personagem. Alguns diálogos de briga são tão bons que suscitam aquela vontade de reler Machado ou ir até os teóricos da comunicação de Palo Alto, que escreveram a Pragmática da Comunicação Humana, livro de 1973 de Watzlawick, Beavis e Jackson, que poderia ser traduzido artisticamente por essa obra. A pesquisa dos autores mostra que tudo é comunicação, toda linguagem comunica, e é disso que trata Contos Partidos de Amor e é também desse saber que qualquer boa dramaturgia se utiliza ao fazer seu espetáculo. É possível notar o quanto a comunicação (ou sua ausência ou fragilidade) é fundamental para que um relacionamento engrene ou não engrene, continue ou termine, volte ou dê adeus. O espetáculo encerra com uma ideia simples, que pode complicar o outro, porque, como assinala o texto, às vezes é simples ser complicado e é complicado ser simples: deixar o amor amar significa não alimentar o verme asqueroso do ciúme. Simples? Complicado? Nem Freud saberia abordar a questão tão bem.
Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes, Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.