Jogo de Cena

Essa intermitente e fragmentada paisagem humana

Por Vivian Pizzinga

 

Foto: Jorge Farias

 

Em Dinamarca, peça apresentada pelo grupo de teatro Magiluth, direto de Pernambuco para o Teatro de Arena do SESC COPACABANA, no Rio, a plateia é recebida como se se compusesse de convidados chegando para uma festa de casamento. Mas não parece chegar em um momento qualquer da festa, e sim naquele período entre o começo e o auge, difícil de delimitar mas fácil de intuir, quando a euforia começa a engrenar em alguns e não demorará a chegar em seu apogeu. Os atores da peça, à guisa de anfitriões, distribuem espumante em taças de plástico para todos que quiserem, oferecem mais aos que já beberam, e há até quem, dentre eles, que comente, com leve amuo de quem não gosta de desfeita, para um dos convivas: “vocês bebem pouco, hein”. O som está no volume máximo, alguns deles dançam, estão todos aparentemente bastante felizes e nós, agora, somos parte da cena.

Esse é o começo da peça, que, com direção de Pedro Wagner e dramaturgia de Giordano Castro, estreou em 2017, foi apresentada em algumas cidades brasileiras como Salvador, São Paulo e Porto Alegre, e parte de uma inspiração em Hamlet para levar a cabo a proposta de discutir aspectos relevantes da contemporaneidade. A ideia da montagem trazida pelo grupo recifense é a discussão das bolhas sociais, tema tão em voga ultimamente, sobretudo em época de divergências políticas acirradas e de estilos de vida e concepções de mundo que são questionados no cerne dessas divergências. O tema é também assíduo nas redes sociais entre os que fazem a crítica dessa maneira de se relacionar com o outro, exatamente por evocar a restrição do campo de relações e contatos sociais a que cada um de nós tem acesso, o que leva à possibilidade de que interpretemos o mundo, as políticas públicas, os fenômenos sociais, a função das novidades tecnológicas, as atividades e manifestações culturais, dentre outras coisas, a partir de uma perspectiva uniforme, totalizante e aparentemente exclusiva, sem espaço para a diferença e a alteridade.

 

Foto: Danilo Galvão

 

A Dinamarca possui a noção de hugge (ou higge), que, ao que tudo indica, evoca uma espécie de vida boa, incluindo tempo para lazeres simples, sofisticados e agradáveis, isto é, incluindo a posse do tempo pelo sujeito, em oposição a ser possuído pelo tempo. Pesquisando um pouco pela internet, vê-se que não é tão consensual o significado do conceito, já que específico do país nórdico. No entanto, é possível entender que a noção abrange o conforto, o oposto da correria, o aconchego, aquilo que acalma e aquece, em suma, a segurança. O status quo parece fazer parte também dessa ideia e, no espetáculo, percebe-se que, para eles, nada ao redor do grupo de anfitriões e amigos mais chegados está à altura dessa forma de vida.

Esse é outro ponto que a peça aborda, quando todos se juntam como se superiores fossem ao resto do mundo, sem problemas, sem dificuldades, sem mau gosto, uma casta que pode se dar ao prazer, por exemplo, de beber como se não houvesse amanhã, entornando uma garrafa de cerveja inteira em uma só golada e depois mais meia garrafa, como podemos ver, agoniados, no começo da peça (não sei os outros, mas fiquei pensando, realmente encafifada, capturada por esse momento inicial e repleto de estranhamento que parece não acabar nunca, se o amargor da cerveja, tomada em grande quantidade num curto intervalo de tempo, e logo no comecinho do espetáculo, não traz ao ator algum tipo de desconforto físico do tipo refluxo ou azia que possa atrapalhar seu desempenho na peça; é interessante também notar que a observação desse momento demorado, infinito, em que o único elemento iluminado do palco é o ator engolindo, gole a gole, a cerveja das garrafas, exerce certo poder de sentir o gosto da cerveja na boca e o enjoo de tomá-la sem pausa nessa quantidade absurda, como se fôssemos nós, e não o ator, que a estivéssemos bebendo). Voltando à relação do núcleo social com o que há ao seu redor, os convidados estão lá, dançando, envolvendo-se uns com os outros, falando de coisas, mostrando habilidades em línguas estrangeiras, e há o resto. Não há como não pensar na elite em suas diversas e possíveis gradações, nas celebridades com canais de YouTube que fazem vídeos e mais vídeos mostrando suas salas enormes e cada objeto que nelas há, seus pares de sapato, seus quartos, sua vida glamorosa que mescla elementos de sofisticação de difícil acesso e arranjos relacionados a uma vida boa e saudável, onde o corpo é bem tratado e pode se dar ao luxo de descansar. Talvez hugge esteja um grau abaixo disso, e o momento em que o grupo se explica o que é, eles estão entrando no ritmo de uma música agradável, alegre e sincopada, que não se caracteriza pelo excesso, mas que é extremamente atraente ao corpo. Pode ser que seja mesmo só com o corpo e o som que possamos explicar o que é hugge e o que é pertencer a uma bolha social.

 

Foto: Jorge Farias

 

Dinamarca, que tem no elenco de atores Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mario Sérgio Cabral, traz momentos de angústia, com repetições de diálogos em grande velocidade e movimentações agitadas, além de relatos tensos, e momentos hilários, como quando o dono da festa manda que recolham os copos e a bebida da plateia, incomodado com sua suposta ingratidão, e exige que tais copos sejam reunidos de uma forma sistemática a seus pés, no momento em que é desagradado, espécie de birra exagerada e fora do tom a que todos aquiescem.

Há também um belo momento, aí para os menos tímidos, em que algumas pessoas da plateia são convidadas a dançar, retiradas com delicadeza pelos atores, momento em que o palco vira uma verdadeira pista de baile, onde os casais rodam como se celebrassem de fato um casamento. É interessante refletir um pouco sobre essa noção de hugge, estranha a nós, brasileiros, e que, apesar de evocar o bem-estar e a leveza, não descarta a tensão, as discussões e o medo que, necessariamente, permeiam as relações sociais, como se vê no espetáculo. Esses picos de tensão e ansiedade, que pipocam aqui e ali, que sempre interrompem a leveza, levam ao questionamento sobre se há, de fato, a possibilidade de uma bolha social completamente apartada do que há à sua volta, se há como conceber formas de relação social que, como ilhas cercadas de gente comum com problemas comuns por todos os lados, nunca estivesse suscetível de ser engolfada por angústias que dizem respeito a todos, a despeito da especificidade de sua inserção social.

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

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