Por entre memórias e imagens: a atmosfera onírica do monólogo Traidor
Por Vivian Pizzinga
“Minha solidão anda tão medicada”. Essa é uma das frases que ouvimos no monólogo Traidor, dirigido por Gerald Thomas, produzido por Fernando Libonati e no qual Marco Nanini brilha em meio a conversas mentais vertiginosas, em uma verborragia crítica implacável que nos captura sem volta. Seria possível desdobrar a frase em muitas outras, elaborar uma lista do que anda tão medicado na maioria de nós e, portanto, tão insuportável, tão devastador. Seria possível também pinçar outras frases no meio do texto para seguir por elas, elaborar outras listas, fazer outras trilhas argumentativas sobre as quais um ensaio sobre o monólogo poderia se dedicar. Fato é que Traidor traz um texto cheio de originalidade, repleto de caminhos a percorrer e de pontos a aprofundar, um monólogo que nos traz solitários desabafos, memórias intrusivas várias e imagens disruptivas acompanhadas de um belíssimo show de cores que a iluminação, assinada por Wagner Pinto, nos oferece. É dessa forma que já começamos o espetáculo com um elenco de quatro atores, que irão intercalar a cena com Nanini, movimentando-se pelo breu à nossa frente e munidos de lanternas direcionadas ao chão, percorrendo o palco como se procurassem algo e, nisso, promovendo círculos luminosos que aumentam e diminuem seu diâmetro a partir da distância da lanterna. Nesse movimento, é como se tais figuras ali se dedicassem a uma busca arqueológica. Talvez o incessante diálogo mental protagonizado por Nanini seja, realmente, uma busca.
O espetáculo é mais uma parceria entre o ator e Gerald Thomas, que também assina o texto e a concepção visual. Em Traidor, Nanini está isolado em uma ilha, é acusado de algo que não cometeu e se entrega a incessantes diálogos mentais em um fluxo intrínseco ao pensamento e à relação entre o que é consciente em nós e o que atravessa as barricadas do inconsciente, sofrendo seus possíveis disfarces e suas eventuais deformações para se traduzir em algo dizível: repetições, associações livres em que uma imagem puxa outra, sensações que adquirem uma dobra imagética, lapsos, chistes.
Traidor é mesmo como um sonho, com os mecanismos a ele inerentes tal qual teorizados por Freud em sua apresentação inicial da psicanálise: o conteúdo manifesto do sonho – aquele que nos é apresentado por quem sonhou e tenta se lembrar de seu sonho – possui uma aparente lógica inteligível, que se pode acompanhar, apesar de guardar distância de qualquer linearidade confortável. O recurso à figurabilidade do sonho estaria, então, nas cenas protagonizadas por Cadu Libonati, Hugo Logo, Ricardo Oliveira e Wallace Lau, que dão vivacidade àquilo que Nanini enuncia textualmente.
Na velocidade da produção de pensamentos e memórias, Nanini passa por muitas questões atuais, que dialogam com sua vida e com a intimidade dos acontecimentos por ele vividos: menciona, logo de início, as redes sociais, como o whatsapp, o tiktok e outras, bem como os próprios aparelhos celulares em si mesmos, que carregam todas elas e se encarregam de nós em todos os lugares a que vamos. Não deixa de ser bastante curioso assistir ao espetáculo nesse momento em que tantas mudanças têm sido anunciadas na gestão dessas redes.
Mas o que tira o fôlego quando se assiste ao monólogo é esse amálgama incontestável entre um texto inteligente e espirituoso, ejetado de qualquer campo de previsibilidade, e uma impressionante dramaturgia, que facilmente nos arrebata. Em Traidor, nenhum dos dois aspectos deixa a desejar ao outro.
Além disso, há, no cenário, um enorme boneco, com o rosto do Nanini, que, naquele momento inaugural de iluminação parcial e paulatina do que há no palco, começa a se revelar a nós. E é com perplexidade que, quando uma parcela desse boneco aparece por instantes, voltando a submergir na escuridão, visualizamos e reconhecemos o semblante do ator, mas imenso e inerte no chão. A cenografia de Fernando Passeti também impressiona. É interessante pensar nesse enorme e curioso objeto cênico como uma metáfora e um lembrete da referência de onde tudo parte: a vivência mental e onírica do protagonista, a vida engessada pelos constrangimentos da cultura, dos hábitos, das obrigações, um corpo amarrado pelas circunstâncias do que se vive. Um corpo medicado, uma alma medicalizada, sentimentos contidos, uma vida com menos escolhas do que a publicidade faz crer.
Por fim, é preciso dizer que percorrer o monólogo em seus detalhes seria uma arriscada tarefa, apesar de se tratar de um espetáculo curto. O risco seria perder-se, não terminar nunca, não fazer jus à riqueza dramatúrgica que a peça logra produzir e, tal qual o sonhador que tenta relatar seu sonho, deformar e mutilar o brilho de um grande espetáculo. Este texto – o conteúdo manifesto que tenta fazer referência ao que senti no momento do espetáculo, àquilo que minha memória pôde reter, às associações a que pude me entregar – será sempre um disfarce do conteúdo latente de Traidor, aquele que está sendo encenado e do qual cada espectador pode se apropriar, em sua miríade de ideias e referências.
Vivian Pizzinga é psicóloga e escreve. Lançou, entre outros, “Ruído nos dentes” (Urutau, 2022, poemas) e “A primavera entra pelos pés” (Oito e meio, 2015, contos). Participou de coletâneas e revistas literárias, como da Revista Lavoura 7 (2022,impressa), Escriptonita (Patuá, 2016) e Cada um por si e Deus contra todos (Tinta negra, 2016, contos). Fez doutorado em Saúde Coletiva, no Instituto de Medicina Social (Uerj), é carioca e prefere o outono.