JOGO TEATRAL, AÇÃO TRANSFORMADORA
Por Paulo Afonso de Souza Castro
A prática dos jogos teatrais como instrumento libertário é fundamental no desenvolvimento de processos criativos de grupos e companhias de Teatro, mas, sobretudo, como metodologia de ensino e aprendizagem para estudantes, e esta é a pedra de toque de nosso artigo.
Existe um paradoxo entre os métodos do sistema educacional vigente e as atividades lúdicas relacionadas à arte, e mais especificamente ao Teatro. Apesar dos muitos avanços obtidos nas últimas décadas em nosso país na área da educação, da legislação inclusiva (e permissiva), das propostas pedagógicas bem fundamentadas e plenas de boas intenções, os alunos continuam sentados em filas, um atrás do outro, copiando textos e decorando conteúdos de modo passivo. Há pouco espaço (quase nada) para a liberdade de expressão, a criatividade e a espontaneidade, e, mesmo nas aulas de “Arte”, o conteúdo é muitas vezes repassado em atividades pontuais e cobrado em avaliações formais, desencantando, dessa forma, a própria arte, deixando-a banal, e, portanto, dispensável como as demais matérias da grade curricular, pois a busca pelo conhecimento é substituída pela mera obtenção de uma nota, para atingir uma média.
O filósofo Michel Focault comparou a estrutura física (e ideológica) das escolas contemporâneas aos presídios e as fábricas, apontando para a intenção implícita de reafirmação da ordem social dominante, através do controle dos indivíduos, da repressão e da padronização comportamental. Já o sociólogo Pierre Bordieu demonstrou que através dos sistemas e códigos de ensino, opera-se um processo de seleção e discriminação social, que reforça a hegemonia das elites. Como diretor de Teatro e professor de História, constatei na prática diária de meu ofício, que as contradições apontadas por Focault e Bordieu estão presentes em nossas salas de aula. Atuando como antídoto a todo este “modus operandi” coercitivo, os jogos teatrais podem ser um eficaz aliado no processo de desenvolvimento cognitivo e emocional do ser humano, sendo, por isso, libertário.
É preciso esclarecer que iniciei minha formação profissional nas artes cênicas. Ainda na adolescência, participei de um grupo de Teatro amador que valorizava os jogos teatrais como método de desenvolvimento individual e coletivo. Posteriormente, cursei a faculdade de Teatro, passando a atuar e dirigir espetáculos, bem como ministrar oficinas de interpretação e dramaturgia. Dessa maneira, os jogos teatrais e as dinâmicas de grupo, aplicados de modo sistêmico, sempre foram utilizados com eficácia nos processos de trabalho artísticos e educacionais em que estive envolvido. Porém, após concluir uma licenciatura em História e um mestrado em Antropologia, passei a ministrar também aulas de História na rede pública de ensino* e me deparei com a falência do sistema educacional vigente. Fato que se evidencia pelo desinteresse generalizado dos alunos pelas matérias estudadas, em consequência da ausência de um processo orgânico e verdadeiro de ensino e aprendizagem. Constatei a ausência de um compromisso de grupo, de colaboração efetiva, de reflexão (individual e coletiva), de debate, de liberdade de expressão e, sobretudo, de prazer em desenvolver um maior conhecimento. Tais sintomas não ocorriam apenas na matéria que leciono (que trabalha com a memória e possibilita a interpretação dos fatos e o diálogo sobre a sociedade, a cultura e o mundo em que vivemos), mas em quase todas as disciplinas. Então, ao invés de basear-se na construção do conhecimento e do pensamento crítico, a escola passava a ser um local de repetição mecânica de conteúdos abstratos, distantes da realidade objetiva, que assim tornavam-se vazios de sentido.
Esta situação caótica é o oposto das premissas que norteiam os Jogos Teatrais, e por isso mesmo eles devem ser cada vez mais utilizados para que se possa transformar a realidade escolar. Para tanto, se faz necessário atitude dos profissionais de arte e de educação, para implementar progressivamente a prática teatral nas salas de aula. Mas não bastam projetos isolados e programas de governo avançados, é urgente e preciso que se construam as condições necessárias para que o Teatro (assim como as demais formas de expressão artística) esteja cada dia mais presente, não apenas nas salas de aula, como nas associações de moradores, fábricas, clubes sociais e grupos religiosos. Não apenas como uma ferramenta de pregação doutrinária, ou mera recreação aleatória, mas embasado em técnicas específicas, fundamentos teóricos e objetivos definidos, e praticado em espaços adequados.
Como a arte foi afastada da vida diária das pessoas, restando apenas subprodutos (na maioria das vezes, grosseiros), transmitidos pelos meios de comunicação de massa, com fins comerciais e ideológicos de dominação, o exercício da prática teatral pode parecer distante ou supérfluo, quando muito, o apanágio de uma casta, de eleitos e talentosos, ou seja, destinada apenas a “pessoas especiais”. Aos comuns, é destinado o enfadonho repasse de conhecimentos prontos e acabados, que na prática não precisam ser processados, e muito menos questionados. Todo este processo de alienação do ser humano perante a dinâmica social condiciona sua visão de mundo, estimulando o individualismo e cerceando a criatividade e a reflexão.
Mas a conquista desses espaços de liberdade e arte na sociedade contemporânea não é somente física, ela ocorre também no campo das ideias, e aí também encontramos fortes resistências, pois o jogo teatral subverte relações hierárquicas, possibilita transgressões de normas padronizadas e aceitas como imutáveis pelo senso comum. Enfim, liberta, e, por isso, é visto com desconfiança. Novamente recorro à experiência prática, pois desde grupos extra-classe de Teatro até atividades isoladas com alunos encaixadas entre aulas formais, pude perceber a força transformadora dos jogos teatrais. Alunos (de todas as faixas etárias), antes dispersivos e desestimulados, dando saltos de qualidade, participando progressivamente das sessões, colaborando com seus colegas, atentos, despertos, sorrindo. Muitas vezes, era difícil retomar aulas formais, que no caso de uma disciplina tradicional ainda são necessárias, pois os alunos cobravam: “Professor, hoje tem Teatro?”
Nem todas as escolas estão abertas a estes novos paradigmas. Muitas tentativas de implementação de jogos teatrais em escolas foram frustradas por inúmeros motivos, e, assim, mesmo com todo o seu potencial transformador, o jogo teatral é descartado. A contrapartida a este quadro desanimador é a persistência, como as formigas que refazem seu formigueiro, tantas vezes ele for destruído, num trabalho incansável, é necessário abrir brechas, provocar rupturas nos muros já desgastados do sistema. Como fazer isso? Através do fomento e da criação de espaços de criação, ambientes de liberdade, grupos de Teatro e da prática e difusão dos Jogos Dramáticos. Desse modo, certamente estaremos contribuindo para que as pessoas e suas relações sejam efetivamente melhores e mais criativas.
Nesta minha caminhada artística pelos palcos, praças, picadeiros e salas de aula, tenho tido como fiéis companheiros os livros de Viola Spolin (especialmente Improvisação para o Teatro), Augusto Boal (com destaque para 200 Exercícios e Jogos para o Ator e Não-Ator com Vontade de Dizer Algo através do Teatro), Joana Lopes (Pega Teatro) e Stella Adler (Técnica da Representação Teatral), leituras que recomendo a quem pretenda conhecer mais a respeito dos Jogos Teatrais. Gosto de propor aos meus alunos brincadeiras de roda tradicionais, de utilizar exercícios do Tai-Chi e de estar atento e aberto às propostas sugeridas por eles, afinal o orientador é mais um participante do coletivo. Trago comigo também os ensinos de Laerte Ortega, grande mestre do Teatro Popular, que formou inúmeros grupos em bairros, escolas, fábricas, demonstrando na sua prática de vida que é possível, sim, construirmos um mundo mais justo, solidário e criativo. Por isso, convido a todos: vamos jogar o jogo do jogo?**, pois, como já nos ensinou Viola Spolin: “(…) Qualquer pessoa é capaz de jogar, de se expressar em cena, desde que ela tenha vontade e exista um ambiente propício para que isso aconteça”.
Através do jogo, abrimos mão de nossas armaduras, de nossas máscaras, nos concentrando nos objetivos que surgem a cada momento do jogo, atuando coletivamente, com prazer e atenção, e assim crescemos, aprendemos, ensinamos e trocamos nossas experiências, afetos e pontos de vista.
* Atualmente, desenvolvo projetos de encenação e dramaturgia, relacionando o estudo de fatos históricos e reflexões antropológicas com jogos teatrais, como a oficina MEMÓRIA EM CENA.
** “VAMOS JOGAR O JOGO DO JOG0?”, é o título de uma peça teatral construída a partir de JOGOS TEATRAIS, de autoria de Fernando Bezerra.
(Paulo Afonso de Souza Castro é autor e diretor teatral, historiador e antropólogo, com mestrado pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Em 2012, dirigiu, na cidade de Caçador-SC, o espetáculo Memórias do Contestado. As comédias O Mistério dos Quatro Quadrados e Os Amores de Jezebel são obras de sua própria autoria, encenadas por vários grupos teatrais no Paraná e em Santa Catarina. Atualmente leciona, escreve, realiza oficinas e palestras, trabalhando com Teatro, História e Antropologia.Contato: teatroluanova@bol.com.br)