A COERENTE TRAJETÓRIA DO GRUPO CENA
Por Geraldo Lima
Embora muitos ainda vejam a Capital do País apenas como um cenário onde a política impera com seus jogos de poder e trapaças, uma produção artística expressiva e de boa qualidade ganha cada vez mais força por aqui. Falo, nesse caso, da produção teatral, que é bem variada e consistente. Alguns grupos têm se mantido fiéis a um trabalho dramatúrgico que lhes dá uma imagem própria, destacando-os em meio à miríade de peças em cartaz.
O Grupo Cena, que tenho acompanhado com mais frequência, é um desses grupos cujo trabalho se destaca, tanto pelo profissionalismo quanto pela coerência em relação à escolha do repertório. Diferente de outros grupos, como é o caso do Teatro do Concreto, ele não tem como proposta a criação coletiva de texto teatral; até agora, o seu repertório teatral se restringiu à montagem de textos de autores estrangeiros, entre argentinos, franceses e norte-americanos. A proposta do grupo, pelo que tudo indica, é apresentar textos teatrais nunca encenados no país, e isso tem resultado, sem dúvida, na montagem de bons espetáculos.
O grupo, criado em 2005, em Brasília, tem como proposta de trabalho “a pesquisa de novas dramaturgias com foco no trabalho do ator”. Para quem acompanha a sua trajetória profissional, isso fica bem claro: os atores e atrizes são levados a representarem com sutileza e densidade, expondo, desse modo, a complexidade da alma humana. Os textos escolhidos, geralmente marcados por uma estética minimalista, sem muita pirotecnia, carregados de lirismo e força dramatúrgica, induzem a esse tipo de representação, na qual o ator ou a atriz, num tom quase naturalista, deixa vazar toda a dimensão humana da personagem. Nesse tipo de encenação, cada gesto, cada palavra, cada expressão facial é importante, obrigando a plateia a acompanhar, com a máxima atenção, a ação que se desenrola no palco.
Sob a direção de Guilherme Reis, também coordenador do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Brasília, o grupo, formado por experientes atores e atrizes brasilienses (Chico Sant’Anna, William Ferreira, João Antônio, Sérgio Fidalgo, Murillo Grossi, Carmem Moretzsohn, Adriana Lodi e Bidô Galvão), já levou aos palcos de Brasília e de outros estados brasileiros peças de reconhecido valor dramatúrgico.
De autores argentinos montaram “Dinossauros” e “Fronteiras”, ambas de Santiago Serrano (assisti à peça “Dinossauros” e sobre ela fiz uma resenha que será apresentada ao final desse texto), e “Varsóvia”, de Patrícia Suárez.
Em 2010, levaram ao palco a peça “Heróis – O caminho do vento”, do francês Gerald Silbleyras. A história de três ex-combatentes de guerra (René/Gustavo/Fernando), que vivem num asilo para idosos, sob a rígida direção de uma freira, é caracterizada pelo tom dramático, irônico e lírico ao mesmo tempo. É comovente assistir ao cotidiano desses três indivíduos, já à espera da morte, mas que, em determinado momento, sob a ameaça de uma mudança na rotina do asilo, planejam uma fuga. “Heróis” é, como diz a sinopse da peça, “… uma experiência de amizade. Amigos são os heróis que ajudam a vencer batalhas da vida”.
Em 2011, o grupo levou à cena a peça “Bagatelas”, da norte-americana Susan Glaspell. O texto da dramaturga norte-americana, escrito no início do século XX, surpreende e comove pela atualidade do tema (a violência contra a mulher) e pela simplicidade da trama, que é, ao mesmo tempo, capaz de revelar as sutilezas da alma feminina e o universo das mulheres no final do século XIX. Mostra, em suma, as diferenças de percepção da realidade entre mulheres e homens. O enredo da peça pode ser resumido desta forma: “Numa casa de fazenda do interior dos Estados Unidos, no início do século 20, ocorre um crime. Um promotor, um delegado e o fazendeiro vizinho são chamados a investigar. Eles levam suas esposas. Enquanto os homens procuram as pistas do assassinato, as mulheres ficam na cozinha, observando o cotidiano da casa, analisando, através das bagatelas, o que pode ter acontecido”. Através desse olhar minucioso, num ambiente que elas conhecem muito bem, chegarão à solução do crime, ou melhor, às causas do crime. E o que elas farão com essa informação? É preciso assistir a essa peça maravilhosa para se entender a decisão tomada por essas mulheres. E aí está a grandeza da arte: a capacidade de nos fazer mergulhar nas profundezas da alma humana e de nos revelar os meandros das intricadas relações sociais.
A montagem mais recente do grupo, em 2013, trata-se do texto “Inventários – O que eu guardei pra você”, do dramaturgo francês Philippe Minyana. Mais uma vez confirma-se a preferência do grupo por textos curtos, minimalistas, mas de impacto pela densidade do tema, da linguagem e da interpretação dos atores e das atrizes. Esse é um texto no qual a palavra e a memória têm uma grande importância. É através do jogo de se revelar, de se expor diante de uma plateia (trata-se, no caso, de um reality show), que a história se desenvolve. “Inventários é um jogo em que o apresentador leva as personagens a compartilhar suas vidas com o público, confessando suas dúvidas, ansiedades, angústias e momentos de felicidade.” Essa peça de Philippe Minyana fez grande sucesso na França, sendo transformada em série de televisão e documentário para o cinema. Talvez por abordar temas caros aos franceses, como a vivência da guerra, ela tenha repercutido tanto lá. Das montagens do grupo a que assisti até agora, essa foi a que menos me agradou. Quando parece que a ação vai sair do “monólogo construído pela memória” e as personagens vão começar a interagir entre si, num embate, a peça acaba. Talvez a culpa seja apenas minha, ao esperar sempre por um grand finale, e pode não ter sido essa intenção de Minyana. A história acaba quando acabam as revelações, ou quando o apresentador, em estilo histriônico, acha que já é tempo de encerrar o programa.
“Dinossauros”, de Santiago Serrano, entrou em cartaz novamente no final de 2012, em Brasília, e pude então assistir à sua apresentação. O meu ponto de vista sobre o espetáculo está no texto apresentado em seguida.
UM TEXTO SIMPLES E COMOVENTE
A peça ‘Dinossauros’, do dramaturgo argentino Santiago Serrano, é de uma simplicidade total: apenas dois atores em cena, um cenário despojado, poucos objetos de cena (um banco de praça, um acordeon, uma sacola, uma garrafa de vinho, talheres), um único foco de luz (sugerindo a luz de um poste), pouca movimentação e diálogos marcados pelo coloquialismo, pelo tom bem natural. Um espetáculo que se sustenta, principalmente, na palavra e na atuação dos atores. Nesse caso, na belíssima atuação do ator Murilo Grossi e da atriz Carmem Moretzsohn, ambos de Brasília e do Grupo Cena. Vale ressaltar, aqui, a segura direção de Guilherme Reis, sem destoar do ritmo que o texto exige.
O que assistimos, em apenas uma hora de duração do espetáculo, é a vida acontecendo, no palco, com expressiva naturalidade: um homem e uma mulher se encontram em algum lugar da cidade, tarde da noite, e, a partir daí, vão se aproximando, dando cabo da solidão e do medo. Tudo isso se dá entre silêncios, risos, tentativas de fuga, de recuo e de reaproximação. O encontro entre dois, cada qual com suas cicatrizes e seus sonhos, vai se consolidando aos poucos, num transe lírico (quase dionisíaco num momento), na medida em que vão se desnudando, se revelando, se entregando. O que acontecerá depois, assim que o dia chegar, ninguém sabe: aos dois fica a certeza de que estão vivendo um momento intenso, que os arranca da solidão e do vazio. Se vai durar, impossível saber. Há a vontade de que dure, e isso já é um começo. Para os espectadores, como ponto de identificação, fica, talvez, a torcida para que continuem juntos, curando-se das suas feridas. Eis aí um texto simples na sua tessitura, mas de significado muito profundo.
Essa montagem da peça de Santiago Serrano, pelo Grupo Cena, já está em cartaz há bastante tempo e foi apresentada em vários locais do Brasil, sempre com muito sucesso. Aqui em Brasília, voltou a ser encenada e ficou em cartaz, no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, Shopping Iguatemi–Lago Norte, até o dia 25 de novembro. Para os que não tiveram a oportunidade de assistir a esse belo e comovente espetáculo teatral, fica a torcida para que ele volte a entrar em cartaz.
(Geraldo Lima é professor, escritor, dramaturgo e roteirista. Tem alguns livros publicados, dentre eles Baque (contos, LGE Editora), Tesselário (minicontos, Selo 3 x 4, Editora Multifoco) e Trinta gatos e um cão envenenado (peça de teatro, Ponteio Edições). É colunista dos sites O BULE e Portal Entretextos. Colabora com o Jornal Opção, em Goiânia, e com o Jornal de Sobradinho. Bloga ainda em Baque)