Olhares

Espirais do caos: uma vereda em Samuel Luis Borges

Por Fabrício Brandão

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

No cerne do tempo, as formas transitam. Saem do plano mental das ideias para depois ocuparem espaços plenos de significado. Flutuam por entre seres e dimensões possíveis num emaranhado de sensações que, ao fim e ao cabo, são demasiadamente humanas por natureza.

Acima de toda uma composição abstrata da vida que as linhas iniciais desse texto acabaram de mencionar, há o fino trato do entendimento das coisas pelo viés da poesia, essa colossal capacidade que um determinado artista possui de tornar perceptíveis sentimentos emanados de uma fonte intangível.

Faz toda diferença considerar que certas rotas traçadas pela arte aproximam dois polos fundamentais da acepção das coisas: o primeiro deles pensa a materialidade como instância do que nos é imediatamente visível aos olhos; o outro mergulha no âmago das interioridades, indo buscar ali um resultado subjetivamente marcado pelas construções abstratas do ser/estar no mundo.

Nessa confluência de dimensões aparentemente opostas por natureza, mais especificamente na relação entre o concreto e o impalpável, é preciso dar nome aos bois. Estamos falando de Samuel Luis Borges, artista que, na miríade complexa de seus desenhos e aquarelas, engendra um caminho marcado por uma elaboração peculiar das formas.

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

Por que não falarmos em transgressão quando o artista ao qual acabamos de aludir ousa trazer à baila contornos nada usuais para referendar a experiência humana? A resposta é afirmativa na medida em que Samuel mescla sabores e dissabores tão nossos na caracterização dos seres que advêm da sua inquieta verve criativa. Diga-se de passagem, a tais criaturas pensadas pelo artista em questão é dada uma conformação traduzida em caos e mistério.

Eis que chama atenção no fazer artístico de Samuel a caracterização espiralada de uma parte significativa dos seus desenhos. Tais delineações parecem estabelecer pontos de permanência das formas para algo além da esfera física e visível. Desse modo, a intersecção dos corpos revelados remonta a uma ideia de que os laços humanos estão atravessados por uma pungente sensação de amalgamento. Ao que fica a pergunta: novas existências brotariam dali?

Talvez a mecânica que articula os sentimentos humanos possa servir como resposta. No entanto, há, por assim dizer, o nascimento de outras tantas existências a partir desse cruzamento de traços propostos pelo artista. Dessa interligação dos seres, brota um todo orgânico capaz de nos lembrar que a espécie humana, sendo composta em essência dessa pangeia que aproxima tanto êxtases quanto espantos, delimita seu locus num limiar incessante de labirintos e precipícios. Assim, partidas e chegadas, alegria e dor, vida e morte como cenários possíveis.

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

Qualquer tentativa de tornar banal a acepção do caos parece não encontrar abrigo no trabalho de Samuel Luis Borges. Não é um trato meramente desordenado das coisas e sensações quem dá a tônica da construção imagética como se a solução criativa estivesse contemplada pelos artifícios de um rearranjo. Pelo contrário, devolve-se o incômodo, esse espantado gesto do ser, sob a forma de representações pessoais e sensíveis do laborioso ato que é viver. Daí, o artista não fugir do enfrentamento quando o mundo em toda sua complexidade o convoca a se posicionar.

A expressão artística aqui presente contempla também a impressão de que o homem contemporâneo não é detentor de uma identidade estática, tendo em vista que o caldeirão das representações culturais borbulha mudanças estruturais a todo tempo e que atingem o sujeito em sua busca por sentidos. Em face de tal cenário, difícil seria manter viva qualquer alusão a lugares pacificados pelas mãos invisíveis da uniformidade.

No seu modo autodidata de se comunicar com o mundo, Samuel confere à poesia um status de razão central de suas manifestações enquanto artista. E o fazer poético não é apenas o gesto que transborda de seus desenhos e aquarelas, mas também aquele que demanda incursões pela palavra escrita e falada.

Envolto pelas atmosferas urbanas, Samuel Luis Borges existe entre nós. Transita entre os espaços da metrópole que acolhe e repele, navega pelo insondável. É porta-voz da construção e também da desconstrução do tempo. Tenta fazer com que sua arte desacostume o arranjo natural das coisas.

 

Arte: Samuel Luis Borges

 

*Os desenhos e aquarelas de Samuel Luis Borges fazem parte da galeria e dos textos da 119ª Leva

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos, filmes e no ato apaixonado de tocar bateria. Atualmente, é mestrando em Letras pela UESC, cuja linha de pesquisa reúne Literatura e Cultura.

 

 

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