Delicados percursos de uma paisagem humana
Por Fabrício Brandão
Cada vez que um artista descortina um véu de coisas ante nossos olhos, é como se outros tantos mundos surgissem com toda sua intraduzível aparência. Mas de onde partem essas novas esferas da existência em meio a uma carga pungente de invenção? A busca pela palavra certa e que melhor define as sensações pode apontar para alguma espécie de reinvenção, ainda mais se considerarmos que a novidade, debaixo do sol que nos guarnece e acalenta, pode não passar de uma quimera.
Eis que duas porções que mais parecem antagônicas teimam em habitar o mesmo espaço abstrato. De um lado, a visão onírica da vida a pulsar desejos e projeções íntimos; do outro, a concretude abraçada ao olhar que considera a porção racional uma ferramenta de constante inquietação. Parece ser possível ter em conta a coexistência de tais dualidades quando observamos detidamente o trabalho artístico de um alguém como Sadrie. Pelo modo como a artista apreende as epifanias mundanas, vemos brotar certo equilíbrio entre o intangível e o corpóreo.
Nas ilustrações de Sadrie, delineiam-se contornos de uma complexa paisagem humana, toda ela entrevendo rituais do corpo e da mente. A essa altura, convém ressaltar o modo como os desdobramentos do feminino assumem uma condição de destaque. A partir desse enquadramento, a artista direciona nossos olhares para o modo como a representação da mulher serve de guia para se perceber a pulsação de um mundo feito tanto de traços sublimes quanto de revelações incômodas. Seja sob a forma da contemplação do belo ou na disposição de um viés crítico, as nuances femininas prenunciam aqui um universo no qual podemos também vislumbrar uma noção de unidade a achar abrigo ideal no reino da poesia. Assim sendo, à figura da mulher, guardiã das dimensões que nos são mostradas nesse tipo de arte, é confiada a missão de unificar todo e qualquer sentimento, independente de quaisquer denominações que insistam em classificar pessoas.
Sadrie é, na verdade, a persona artística de Sarah Adriaenssens, uma brasileira que atualmente mora em Antuérpia, na Bélgica. Segundo ela nos confessa, um dos intuitos maiores de sua arte é poder contar histórias através das imagens criadas. Além de se dedicar a ilustrações, a artista também trabalha com quadrinhos e animações. Sua arte também está associada a uma busca pelas raízes que remontam a um resgate pessoal da identidade brasileira. Algumas de suas influências derivam de nomes do quilate de Carybé, Lygia Clark, Louise Bourgeois e Ana Mendieta.
Sadrie evidencia a presença marcante das cores como se estas provocassem um efeito de ressignificar objetos, corpos e lugares. Diante da constatação de que o mundo oferta narrativas nem sempre tão carregadas de leveza, a artista parece subverter tamanha sensação que algum desalento pode nos causar quando engendra temas pueris em alguns de seus trabalhos. Em lugar de considerar como fuga, podemos conferir a tal atitude uma tentativa de mostrar que a serenidade é uma válida maneira de se conceber as coisas que nos cercam. De resto, agigantam-se visões em torno da vida, esta mesma que pode ser tomada em plenitude por marcar em nós a valiosa imprevisibilidade das pequenas coisas e gestos.
* As ilustrações de Sadrie são parte integrante da galeria e dos textos da 125ª Leva
Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos, filmes e no ato apaixonado de tocar bateria. Atualmente, é mestrando em Letras pela UESC, cuja linha de pesquisa reúne Literatura e Cultura.