Sob o signo da espontaneidade
Por Fabrício Brandão
Uma nesga de sol invade a paisagem enquanto meninos brincam desfilando sua liberdade. Noutro ponto, uma canoa vermelha repousa suas memórias na calmaria da noite que adentra. Do alto de alguma porção litorânea, um pequeno grupo de pessoas é silenciosamente observado enquanto ensaia sua entrada no mar. Um aglomerado de bovinos revolve a poeira de seu confinamento. O menino atravessa a água com seu gesto pueril descortinando dimensões do sabor de viver. As cores e formas passeiam em meio à rotina de indivíduos que transitam por ambientes urbanos diversos.
Tudo o que foi descrito acima é apenas uma pequena parte daquilo que compõe a arte do fotógrafo Almir Bindilatti. E apresentar tal recorte de imagens captadas pelas lentes de seu autor significa prestar atenção para o trabalho de um alguém que, de forma marcantemente poética, consegue fazer da captura do cotidiano algo diferenciado. Por vezes, deixamos escapar inúmeras possibilidades de apreensão do real em razão de que nosso olhar acomoda-se pelas zonas de conforto do óbvio. No entanto, a experiência ganha outro fôlego quando vislumbramos sentidos alternativos para as imagens com as quais nos deparamos.
O grande desafio de Almir Bindilatti com seu ofício de registrar a luz é nos apresentar a pulsação da vida tal como ela é. Haveria, então, algum artifício mágico para obter tal resultado? A resposta é negativa. Daí que o fotógrafo em questão confessa não ser adepto da manipulação das imagens, ou seja, de qualquer tratamento que seja capaz de alterar tudo aquilo que foi capturado com naturalidade. Assim sendo, o artista vai mais além, buscando em seu trabalho um resultado que se pretende orgânico, evidenciando, como ele mesmo nos diz, um elo entre câmera e figuras humanas que atenta para o respeito com as culturas urbanas, principalmente à luz de aspectos étnicos.
Na busca pelo flagrante natural dos gestos humanos, Almir intenta a plenitude abrigada nas manifestações de seus personagens. Tal percepção aponta a todo instante para uma noção de alteridade que implica no respeito e na preservação dos domínios íntimos do Outro, então mostrado pelas lentes. Penetrar na esfera alheia requer também certo tempo de maturação, permitindo com que as pessoas continuem vivendo suas sinas com o crivo da espontaneidade. É um hiato preciosamente marcado pela espera e pelo silêncio, no qual o trunfo do fotógrafo é colocar em evidência o momento que melhor retrate a existência humana.
Sem dúvida alguma, o viés antropológico permeia o ofício de Almir, qual seja o que denota o respeito a culturas e modos de articulação do ser e estar distintos na complexa paisagem urbana observada. Cruza-se a linha do Outro primando pela sutileza das investidas, sem que se pretenda a desconfiguração das vivências e práticas imersas na trajetória dos mais variados atores sociais. O saldo das escolhas do artista é deveras significativo na medida em que os diferentes cenários e seus respectivos protagonistas contemplados reproduzem a fluidez ininterrupta da existência.
Nascido no interior de São Paulo, mais precisamente em Tupã, Almir Bindilatti mudou-se para Salvador e lá viveu por bastante tempo, inclusive executando projetos editoriais sobre história, cultura e arte. Desde o começo de 2018 reside em Lisboa, inaugurando uma nova fase em sua vida, o que significou a possibilidade de se dedicar completamente ao seu ofício autoral. Seu trabalho lhe rendeu o Prêmio Leica de Fotografia no Brasil em 2010. É autor dos livros fotográficos Photo Bahia (2008), Mosteiro de São Bento da Bahia (2011), Um Sertão entre tantos outros (2015), tendo participado também de obras coletivas. No ano de 2013, ainda integrou uma exposição coletiva de artistas brasileiros em Xangai, como parte das ações do “Ano do Brasil na China”.
No exercício de captar a vida do modo como ela se mostra, o fotógrafo é testemunha não apenas de um conjunto de rituais e práticas sucessivas ou aleatórias, mas também de revelações associadas ao campo do inusitado. Diante de suas lentes, um pacto constante resta estabelecido: o da coexistência harmoniosa entre a presença do artista e seu objeto. Esse silencioso contrato representa o esforço de não se alterar as rotas contempladas pelo olhar de quem as mira de fora. É com a pungência da poesia que habita os arremessos cotidianos que Almir consolida tal relação.
* As fotografias de Almir Bindilatti são parte integrante da galeria e dos textos da 130ª Leva
Fabrício Brandão confessa que, definitivamente, não consegue sobreviver sem arte. Por isso, atira-se a livros, discos e filmes com o sabor perene da primeira vez. Por isso, edita a Revista Diversos Afins, é baterista amador e Mestre em Letras: Linguagens e Representações (UESC), aliando Literatura, Comunicação e Cultura.