Esses insondáveis olhos que nos miram
Por Fabrício Brandão
A Arte não é apenas esse complexo de possibilidades, concretudes e experiências que se prestam ao território de uma já tão costumeira e reduzida noção de entretenimento. E talvez esse discurso visa reduzir o real impacto que o ofício artístico pode representar para quem se digna a produzir seus conteúdos. Ao lado disso, há a necessidade de percebermos que o artista é, para além de seus gestos humanamente transformadores e contemplativos, um alguém que vive do seu labor, um trabalhador que também oferta seus produtos e precisa se manter profissionalmente dentro de uma determinada lógica de sobrevivência.
Essa discussão toda acaba trazendo à tona o próprio valor que atribuímos aos bens culturais. E fica a questão: por qual razão ainda tomamos a Cultura como algo secundário numa sociedade que demanda sempre pautas urgentes? Indo mais além, por que a seara cultural não seria um gênero de primeira necessidade em nossas prateleiras pessoais? Talvez nos falte informação ou, melhor dizendo, educação suficiente para que consolidemos a Cultura num amplo nível de aceitação social.
Mas por que levantar todas essas questões num texto que se dedica a destinar olhares sobre uma artista em especial? A melhor resposta talvez seja considerar que, assim como poderia ocorrer com qualquer outro ramo de atividade profissional, as escolhas e o poder do chamamento pessoal influenciam e mudam rumos. Foi o que aconteceu com Ana Luiza Tavares, que, ao longo de anos consideráveis, viu-se dividida entre as feições de dentista e artista plástica. Ela confessa que, numa certa altura de sua vida, chegou a se afastar da arte por dilemas atinentes à subsistência financeira, chegando a colocar em xeque a própria vocação artística.
Para nossa satisfação e descoberta, o tempo, este senhor que também atenua fardos, foi capaz de apresentar a Ana Luiza caminhos de permanência pelas vias artísticas. Hoje, sua arte coexiste com a ainda trajetória de odontóloga, mas de modo mais firme, decisão que certamente redimensionou sua vida a patamares nítidos de realização pessoal.
A seu modo, os desenhos de Ana Luiza Tavares rendem especiais visitas a um universo feminino que sabe a territórios de delicadeza e força. Nesse ínterim, chama especial atenção o emprego das cores, pois estas representam um verdadeiro termômetro de sensações aplicadas às personagens que nos são apresentadas. Cada tom utilizado traduz a performance feminina diante dos mais distintos cenários mundanos, condição tal que pode refletir tanto serenidades quanto inquietudes.
Flertando com elementos poéticos, dos quais a síntese se destaca, Ana Luiza condensa imageticamente sentimentos que pulsam na intimidade humana. Dessa maneira, percebemos alguns de seus desenhos comunicando e reunindo, a um só tempo, temas como o silêncio e o recolhimento, gestos tão necessários em meio ao turbilhão contemporâneo a que somos submetidos.
A artista, nascida em Salvador, vive no Rio de Janeiro há cinco anos. Desde muito pequena, testemunhou no seio de sua família a presença ativa da arte, pois sua mãe é ceramista e seu pai um geólogo aficionado por artes plásticas, literatura e música. Quando retomou seu ofício artístico, Ana viu as coisas acontecerem numa velocidade que nem supunha pudessem ocorrer. Conseguiu impulsionar sua carreira de ilustradora, passando a divulgar e comercializar suas obras tanto nas bandas virtuais quanto em espaços físicos no Rio.
Há o algo que se destaca na expressão facial das mulheres dispostas nos desenhos da artista. É como se cada gesto, cada olhar em particular, nos despertasse para contextos peculiares de contemplação e reflexão, sugerindo mergulhos ensimesmados e nem sempre leves de assunção. Aliás, dizer do que somos também denota um infindável complexo de narrativas marcadas por tensões de natureza múltipla. Seja na via de um clamor profundo ou na transmissão de um simples encantamento com a vida, as mulheres de Ana Luiza Tavares olham bem dentro nos nossos olhos, ofertando-nos possivelmente um banquete de estranhamentos e espantos.
* As ilustrações de Ana Luiza Tavares são parte integrante da galeria e dos textos da 135ª Leva
Fabrício Brandão é caótico, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no mundo como editor, poeta, baterista amador, mestre em Letras e doutorando.