Por Fabrício Brandão
De modo pungente, os caminhos que levam a um entendimento sobre a condição humana nos tomam de assalto. Com eles, algumas cômodas certezas vão sendo questionadas e muitas vezes colocadas numa complexa perspectiva de reformulação. No universo das palavras, o ato primevo e substancial da leitura representa uma experiência impactante sob o ponto de vista da alteridade. O que seria, então, de nós sem essa vigorosa perspectiva de olhar o Outro como uma imprescindível fonte de compreensão das coisas que nos cercam?
O fato é que a Literatura, com seu acentuado caráter de revolver mundos, é capaz de nos dar indícios de que tudo gira ao nosso redor como as imagens de um caleidoscópio. Nesse processo, leituras e escrituras são faces de uma mesma moeda: a do desejo irrefreável de nos vermos com certa dose de profundidade. Por mais libertário que possa parecer, o ato de ler revela também uma necessidade que temos de exercitar um mergulho em nós mesmos. Com isso, se o que buscamos são respostas, as dimensões vividas ganham proporções verdadeiramente abissais.
Sob o ponto de vista de quem escreve, o ofício não é menos ruidoso. E o ato contínuo de vislumbrar os recortes humanos é um elemento deveras motivador da criação. Nesse sentido, autores como Helena Terra parecem nos ofertar uma bússola para algum tipo de orientação. Quem se permite desfolhar as páginas do romance de estreia da moça gaúcha, alcunhado de A condição indestrutível de ter sido (Ed. Dublinense – 2013), pode suspeitar por quais veredas sua criadora transitou. Num tempo em que nos acostumamos a tratar a temática do amor com certa reserva, o livro de Helena nos mostra que, para além da viciada noção efêmera, o terreno das relações não se presta a observações reducionistas. Engana-se quem pensa que o escapismo do outro diante de nossos projetados domínios é a razão de ser da obra. Um lapso temporal da delicadeza move a narrativa de tal modo que flutuamos pelas acepções possíveis da incompletude humana. Especialmente pela atmosfera que emana desse seu rebento literário, Helena acolheu a Diversos Afins para um breve diálogo. Para nós, fica o testemunho de uma autora altamente comprometida com as implicações de seu tempo, vertendo, de modo favorável, suas íntimas imagens em hábeis letras.
DA – “A condição indestrutível de ter sido” marca sua estreia no romance e traz um tema cuja presença na contemporaneidade é bastante emblemática. O amor, da forma como o percebemos hoje, não lhe parece impregnado de uma substancial volatilidade?
HELENA TERRA – Não. O que me parece é que há uma urgência em encontrá-lo e em se dizer eu estou amando, o que complica as relações afetivas contemporâneas e as torna sujeitas a inúmeros equívocos. Primeiro, porque o amor não é um produto disponível nas melhores lojas do comércio ou em sites de internet. Amor não é algo que se escolhe em uma vitrine, que se digita no google, se diz quero esse modelo e se veste, consome, exibe para depois ser devolvido no setor de produtos com defeitos ou descartado diante de uma nova oferta. E segundo porque o amor é um sentimento exigente, que implica sabedoria emocional, virtudes de caráter e constância, trabalho mesmo. Como a felicidade, o amor exige trabalho. Raduan Nassar e Charles Bukowski escreveram duas frases relevantes sobre ele. Escreveu Raduan, no Lavoura Arcaica: eu que não sabia que o amor requer vigília. E, Bukowski, em o Amor é tudo que nós dissemos que não era: o amor é uma palavra usada muitas vezes e muitas vezes cedo demais. Concordo inteiramente com eles.
DA – A protagonista do seu livro transita pelos, digamos assim, territórios protegidos do amor. Nesse aspecto, há a presença dos mecanismos de defesa proporcionados pelas redomas tecnológicas que tanto nos envolvem. Como você percebe tal questão?
HELENA TERRA – A narradora do livro me parece ser, por natureza, uma pessoa reservada e, até conhecer Mauro, estar intensamente focada em sua relação com as palavras e com os livros. Em algum momento, o leitor sabe que ela esteve dentro de uma relação afetiva com alguém do que entendemos por mundo real, mas não há pistas sobre como esse encontro/desencontro se desenvolveu e porque acabou. E não há de propósito. Não acredito em modelos amorosos e em espaços perfeitos para o amor e para as paixões. Os motivos que levam casais a se unirem e desunirem, não importando o tempo em que permaneçam juntos, fogem da nossa compreensão e fogem também das partes envolvidas. O, digamos, diferencial da internet é que ela permite uma maior ousadia e uma maior velocidade no processo de se conhecer ou desconhecer outra pessoa. Mas essa ousadia e essa velocidade são opções e não uma regra. As pessoas que criam personagens de si mesmas no mundo virtual costumam fazer o mesmo no real. As que tendem a mentir, mentem. As que tendem a exagerar, exageram. As que tendem a enlouquecer, enlouquecem. E as que tendem a amar, amam. Os simulacros não se sustentam a longo prazo. A internet é um dos espaços mais democráticos para a circulação das verdades e da maturidade emocional de cada um.
DA – Ao passo que sua protagonista e o Mauro, objeto da paixão dela, vão estabelecendo aproximações no campo do real, o impacto das sensações se modifica e vai perdendo um tanto do vigor inaugural. Em que medida a intimidade pode ser também um lugar de desconstrução?
HELENA TERRA – A intimidade, paradoxalmente, pode ser a nossa zona de conforto e também a de confronto. Fantasia e realidade ganham dimensões diferentes com o convívio com outra pessoa. Ela, de certa forma, funciona como um filtro em que o incompatível com a natureza de cada um e com suas expectativas é eliminado ou purificado. Na relação da narradora com Mauro, o impacto das sensações se modifica porque, apesar da sintonia virtual, eles não esperam o mesmo um do outro e, porque, como é comum na internet, a sedução se estabelece por meio da literatura e das palavras. Os dois não deixam de ser uma ficção, mesmo depois do encontro na cidade em que ele mora, porque fazem o recorte de si mesmos, selecionam as facetas e o que desejam que o outro saiba quando se escrevem mais por impulso que por tempo de maturação do relacionamento.
DA – Há algum aspecto marcante desse turbilhão chamado pós-modernidade que moveu fundamentalmente suas escolhas narrativas?
HELENA TERRA – Não, creio que não. Não optei por uma narradora em terceira pessoa porque queria dar a sua voz o máximo de carga dramática e optei por ter como pano de fundo desse discurso o ambiente virtual porque ele se constrói a partir da palavra. Na internet, ela é o carro chefe. Por mais que imagens possam contribuir para o desenvolvimento de qualquer tipo de relacionamento, sem a linguagem escrita não se tomam decisões nem se avança em direção alguma.
DA – A afirmação de algumas bandeiras de gênero parece tomar significativa proporção no debate literário moderno. É o caso, por exemplo, de se considerar a existência de distinções como literatura gay, feminista e etc. Essa territorialização limita as possibilidades criativas na medida em que volta suas atenções para focos de resistência?
HELENA TERRA – Não compactuo com essas distinções e considero qualquer uma delas como uma forma de auto-exclusão. Essa ideia de se encaixar em um grupo é redutora e alimenta preconceitos. Não me considero uma escritora de literatura feminina por ser do sexo feminino, não me considero uma escritora gaúcha por ter nascido no Rio Grande do Sul. Sou uma escritora de língua portuguesa por ser essa a minha língua mãe. E é dentro dessa circunstância, livre dentro do imenso vocabulário e de todos os recursos gramaticais que o nosso idioma nos oferece, que exerço meu potencial criativo e a minha sensibilidade. Literatura implica humanidade e humanidade está acima de rótulos.
DA – Quais aspectos você julga serem os mais importantes na composição do atual cenário literário brasileiro?
HELENA TERRA – Não sei exatamente pontuar o que é mais importante. Mas o cenário atual me parece mais generoso no sentido em que hoje há uma série de instrumentos a favor da profissionalização de um escritor e da divulgação de um livro. Na última década, surgiu uma quantidade significativa de cursos, oficinas, laboratórios etc., buscando a qualificação dos textos; surgiram novos prêmios, alguns com incentivo financeiro; o interesse estrangeiro pela literatura brasileira se confundiu um pouco com o interesse pelo próprio Brasil, criando um novo público de leitores e um novo mercado editorial fora do país; e também houve uma abertura maior, uma curiosidade maior de público e de editoras em conhecer o que está sendo produzido agora. Isso não significa que esteja tudo em ordem. A cultura no Brasil está, como nós todos, buscando cidadania.
DA – Uma outra feição sua é a que lhe faz trilhar os caminhos das artes plásticas. De que modo você vislumbra o mundo a partir desse lugar?
HELENA TERRA – Por natureza, sou uma criatura estética. Procuro e vejo beleza, expressão, força, emoção, mesmo que em um recorte pequeno de algo, em tudo. Tenho no olhar e na linguagem os meus dois interesses mais desenvolvidos, e os dois se misturam. Vejo uma imagem configurando-a em som e palavras. Escuto palavras e sons atribuindo a elas imagens. Do ponto de vista profissional, são universos, embora artísticos, diferentes, em que as carreiras seguem com completa autonomia.
DA – Gabriel García Márquez dizia que, para escrever, um autor deve saber muito bem quais rumos sua narrativa vai tomar. Há pouco tempo, você deu indícios de que um novo livro já faria parte de seus planos. Nesse futuro trajeto da criação, como você engendra a arquitetura da obra?
HELENA TERRA – Não sei até que ponto esse saber muito bem quais rumos uma narrativa vai tomar é realmente importante. Os processos criativos são inúmeros. No meu caso, preciso saber sobre o que quero escrever, saber qual o ponto a ser carregado por toda a narrativa. No A condição indestrutível de ter sido, meu foco era a confiança tanto nas pessoas quanto nas palavras, mas eu não tinha um projeto definido que envolvesse início, meio e fim. Tinha o título em mente como um fio condutor. Nesse novo livro, a escrita está se construindo de outra forma. Escrevi, em uma caderneta, uma espécie de mapa e de quebra-cabeça da narrativa e algumas instruções em causa própria de como proceder para manter a disciplina. Aparentemente, a Helena que está escrevendo esse novo livro não é a mesma que escreveu o outro. Mas é. E o interessante em ser gente é exatamente isso: ser um podendo crescer, se transformar e ser quem se é sendo também outro.
DA – Na fluidez de palavras e imagens, o quanto Helena Terra conhece Helena Terra?
HELENA TERRA – Bastante. Dois caminhos me conduziram nesse sentido: a literatura e a análise psicanalítica. Na literatura, lendo mais que escrevendo, ainda que o processo de escrita exija muita reflexão. Lendo autores de várias gerações, geografias, estilos, ampliei minha visão de mundo. Com Dostoiévski, por exemplo, compreendi que os homens nunca sentem da mesma maneira, então, os castigos a eles impostos serão sempre desiguais. Temos de levar em conta o significado de cada sanção para cada espírito. Os livros, e aqui me refiro aos livros corajosos que servem à vida e não às vaidades, nos provocam, sacodem e reconfiguram.
Helena Terra transborda sensibilidade (pacto consigo e não com os outros)a cada envolvimento em que sua alma arde… Romance, Poesia, Artes Plásticas… bela entrevista, extraordinário livro, abraços!
Essa moça é boa em tudo que faz. A entrevista prima pelo rigor nas respostas e pelo primor das perguntas. Se a moça é boa e o entrevistador domina a arte de entrevistar, transborda, como diz Domingos Barroso, sensibilidade para todos os lados. E o leitor sai mais enriquecido. Parabéns a Diversos Afins e aos dois que sabem o que fazem e o que dizem.
Fico feliz em ter podido, em alguma medida, acompanhar o seu amadurecimento na escrita, na própria expressão, e não tenho dúvida de que o novo livro irá surpreender, porque renovar-se é uma palpitação constante de sua alma. Simplesmente amei a entrevista! Beijos
Obrigada, pessoal :)
Saudades de vocês!
José Carlos, você tem face? Me escreve por email!
beijossss
Helena, criatura estética, bela e madura entrevista! Respostas lúcidas e inconformistas para perguntas extremamente bem formuladas. A resposta ao último questionamento é um fecho de ouro, sobretudo quanto ao poder dos livros corajosos que servem à vida. Parabéns! Beijo.
Parabéns pela entrevista! Como a gente faz para comprar o livro da Helena?