Por Fabrício Brandão
Dizer que Pernambuco, com sua multifacetada expressão artística, ocupa um lugar mais do que especial na cena cultural brasileira é revisitar uma condição que certamente muitos já sabem de cor. Desde manifestações populares até os ímpetos mais modernosos, a música daquele estado guarda relações cada vez mais universais e reforça uma dinâmica que vai de dentro de si para o mundo. Com os matizes peculiares de suas paisagens, a cultura pernambucana pode falar de suas ambiências a qualquer habitante desse nosso complexo planeta. E o interessante é perceber que, apesar das distâncias geográficas com outros recantos mundanos, o espírito das coisas vividas e manifestadas na via musical pode perfeitamente comungar com o pensamento de quem quer que seja.
Por trás das cortinas da virtuosidade, a capital Recife abriga artistas também comprometidos em não somente expandir as fronteiras de seus trabalhos, mas principalmente dotá-los de uma consciência crítica capaz de repensar o caos. Nesse aspecto, os chamados independentes, dada a sua condição de desbravadores de espaços, conhecem com propriedade o significado do que seja resistir ao tempo e aos ditames dum modelo fonográfico desgastado e desigual. E assim vão conduzindo seus trabalhos, tendo como mote a coerência presente em suas trajetórias pessoais. Um dos novos representantes dessa perspectiva lúcida de manifestação é o cantor e compositor Ricardo Chacon. Integrante de uma geração disposta a arregaçar as mangas e viver intensamente o ofício musical, Chacon traz em si uma visão bastante aguçada dos temas que compõem seu meio. Quando nos concede a entrevista que agora segue, sabe falar não somente dos caminhos que o motivam a seguir adiante, mas sobretudo da forma como vislumbra um cenário ideal para si e seus pares.
Em 2008, Ricardo Chacon, ao conceder, juntamente com Piero Bianchi, uma entrevista para a Diversos Afins, já dava mostras dos voos que pretendia alçar com sua carreira. Àquela época, o assunto girava em torno de seu primeiro disco, Terra Papagali Coffee Shop, trabalho que marcou de modo especial sua caminhada pelo fato de representar um consistente resumo de brasilidade. De lá para cá, outros trabalhos se desenvolveram, a exemplo do EP Chacon (2010) e o single Nonsense (2012). No meio dessa jornada, há que se considerar também o projeto conduzido com a banda Nós4. Mas ao chegarmos ao momento presente, vemos um artista profundamente comprometido com novas maneiras de se comunicar com o público. E isso fica bem claro quando escutamos Chaka Nigths, álbum que acrescenta ao rock do artista recifense uma pitada de psicodelia. Tal como é possível perceber do seu testemunho, Chacon se mostra pronto a dar continuidade a seu caminho. Com opiniões sinceras, enxerga seu tempo nitidamente, certo de que, apesar dos entraves vividos, elegeu a melhor maneira de respirar o ar que lhe foi confiado pela vida. Por aqui, fica o testemunho de toda essa atmosfera.
DA – Antes de se chegar num determinado estágio, um artista sempre traz na bagagem as vivências de outras eras, sobretudo quando elas apontam para um projeto consistente já realizado. E aqui podemos falar na experiência marcante com o disco Terra Papagali Coffee Shop, álbum que revela virtudes duma brasilidade. Qual o legado maior desse trabalho para sua carreira?
RICARDO CHACON – A musicalidade do disco, acho, foi o maior legado deixado. A junção dos ritmos, os artistas que reunimos. Acho que a própria parceria musical entre mim e Piero, o momento que a gente vivia musicalmente, acabaram contribuindo para isso. Ousamos fazer esse disco, usamos as nossas economias e montamos uma viagem incrível, levando sempre conosco uma base gravada ainda em Recife. Foi um trabalho bastante rico, muito percussivo, muito brasileiro. Acho que o aprendizado desse disco, de todo o processo de gravação, é o que trago comigo.
DA – Depois do Terra Papagali Coffee Shop, a sua afirmação enquanto músico ficou impregnada de desafios mais complexos?
RICARDO CHACON – A gente sempre busca algo novo, criar algo diferente, e depois do Terra Papagali busquei me encontrar, achar minha música ainda mais. O processo de gravar um disco é algo que consome você de uma forma, que você quer fazer aquilo novamente. É sempre um desafio expor algo, colocar para fora as músicas. Há sempre um grande aprendizado por trás disso.
DA – Ao chegar em Chaka Nights, seu mais novo disco, você aposta num caminho mais ligado ao rock, sobretudo com uma atmosfera de nuances psicodélicas. Como se deu o processo de concepção do álbum
RICARDO CHACON – Tive a ideia de fazer esse disco em 2010, mas não tinha dinheiro. Então gravei um ep com quatro músicas, chamado EP Chacon. Montei uma banda e fizemos alguns shows. Então, começamos a trabalhar novas músicas nos ensaios, junto com a banda, e foram surgindo os primeiros arranjos, até gravarmos o primeiro single, Nonsense. Foi uma fase difícil, porque fazer disco sem apoio e sem grana é muito desgastante. Consegui terminar o disco com muita dificuldade. E o som dele tem muito a ver com o momento e com os músicos que me ajudaram na produção. Busquei parcerias para as letras, já que não quis, nesse disco, escrevê-las. Foquei mais nos acordes, os poucos que eu sei…
DA – Diante daquelas dificuldades que você passou, infelizmente comuns à maioria dos artistas, esse disco surge como uma espécie de tentativa de se manter firme no ofício?
RICARDO CHACON – Eu precisava fazer esse disco e passar por todas essas dificuldades. Tudo para eu aprender cada vez mais e entender também o mercado atual. Como havia dito anteriormente, era algo que precisava fazer e fiz. Não pretendo passar por isso, sozinho, novamente. Um dia espero ter um bom material para mostrar para os meus filhos, e que outras pessoas também possam conhecer mais os meus trabalhos.
DA – Na sua tentativa de entender o mercado musical, a que conclusões chegou?
RICARDO CHACON – Percebo uma dificuldade muito grande de se conseguir meios que te deem acesso a recursos para financiamento dos projetos. Desde o Terra Papagali, buscamos participar dos editais, mas pelo menos aqui em Pernambuco sempre são as mesmas pessoas que conseguem ter acesso ao recurso, pessoas e produtoras que vivem de todos os anos “arrumarem” um projeto para obter o recurso, enquanto outros artistas que não têm certo perfil são ignorados pelas curadorias, muitas delas viciadas em aspectos que acabam desmotivando jovens produtores e músicos. Poucas bandas, com bons trabalhos, é verdade, quase todo ano aprovam recursos, às vezes altíssimos, e muitas vezes nem dão continuidade ao projeto. Em Pernambuco, é absurda a forma como as curadorias trabalham, sem levar em consideração o esforço de quem nunca conseguiu qualquer recurso público e sempre fez tudo do próprio bolso. Repito, apenas poucos têm acesso, os mesmos iluminados, escolhidos por critérios duvidosos e mil interesses. Pessoas e produtoras que todos os anos aprovam projetos e vivem dos recursos que deveriam ser mais democratizados.
DA – De alguma forma, a cena musical de Recife, quiçá Pernambuco como um todo, está dividida em antes e depois de Chico Science?
RICARDO CHACON – Chico, sem dúvida, resgatou algo muito forte, principalmente nos músicos da nova geração. Não muito diferente das grandes cidades, surgiu um movimento muito forte de novos artistas com diversas linguagens, num primeiro momento seguindo o formato de banda com percussão de maracatu. Mas junto com ele veio Mundo Livre, Otto, Eddie, China. Não menos importante, temos a influência gigante de Alceu e Lenine, que também sempre estão por aqui. Pernambuco é realmente um estado em que a todo o momento surgem novas bandas, buscando o que Chico fez: criar uma música, uma identidade, uma batida que é nossa, com nosso sotaque. Hoje o experimentalismo e a psicodelia estão superando um pouco o uso das alfaias, que passaram a soar meio clichês. Também tem muitos grupos que tocam música instrumental, naquela linha mais de trilhas de filmes. Pensar no movimento mangue é pensar muito plural porque também impulsionou novos cineastas e designers, ou seja, realmente revolucionou. Desde lá, ainda não houve outro movimento que realmente tenha causado tanto impacto, mas continuam tentando. Enfim, esse nosso país continente e seus diversos estados e culturas e “personalidades”.
DA – Somos um país que carece de vanguardas?
RICARDO CHACON – Fabrício, eu sinceramente acho que não. O que falta é espaço mesmo para essas vanguardas. Em algumas situações, também acho meio forçado alguns movimentos, repetições apenas do que já houve. Volta e meia, aparecem “novos baianos” (não necessariamente baianos), mas sem uma qualidade como os originais. A mídia e os espaços estão voltados para músicas de momento e de jabá. As rádios, que sempre foram canais de escoação de novas músicas, hoje estão também voltadas às músicas internacionais. O que resta ainda são festivais e editais. Mas como te falei, a mentalidade radical dos curadores em busca da “vanguarda” acaba por tirar a oportunidade de pessoas com talento em favor de outras que não são de verdade como aparentam ser. Não acredito que isso seja um problema apenas daqui de Pernambuco, onde muitas bandas e artistas bacabam desistindo de criar por falta de apoio. Se houvesse realmente uma política de incentivo que acabasse com a mamata que alguns têm de todo ano aprovarem algo, artistas e produtores viciados nesse esquema, outros que nunca tiveram acesso poderiam ter vez. Às vezes, ou melhor, muitas vezes, você até consegue fazer um disco, mas falta grana para uma divulgação, prensagem de cds, ou para fazer uma tour por algumas capitais. Hoje, os artistas autorais são verdadeiros heróis. Poucos mesmo ganham algo com sua arte, tendo que tocar na noite ou trabalhar no comércio, ou qualquer bico que aparecer. Nunca irei achar isso normal. Nosso país é desumano, as políticas públicas são logo corrompidas, sempre em favor de poucos. Quem já sabe como usufruir delas, não cede para os novos. E por isso nossa música está enfraquecida. Pouca coisa nova realmente aparece e tem continuidade muito por conta disso.
DA – Diante desse cenário, e como costumamos testemunhar o vaivém de ciclos, acredita que chegaremos num ponto no qual um novo e alternativo modelo possa surgir?
RICARDO CHACON – Como te falei, existem tentativas como foram o fora do eixo, coletivos, etc. As vanguardas sempre irão surgir ou, neste momento, estão acontecendo. Mas o mercado mudou, tudo caminha para novos modelos de distribuição dos discos, das músicas. Hoje é só jabá, muita grana para as assessorias caríssimas te divulgarem e pouca demanda, a não ser que a música toque numa novela da globo ou que a banda apareça em um dos seus programas. Mas às vezes nem é o que realmente almejamos. O que realmente queremos da música é podermos pagar nossas contas dignamente e ter apoio, sem cartas marcadas. Ou será que é só no futebol que acontecem os 7 a 1 da vida? Não, definitivamente.
DA – O fato de voltar a tocar na noite trouxe outros sentidos para sua carreira?
RICARDO CHACON – Eu, na verdade, sempre toquei na noite, foi a minha escola desde sempre. E assim toquei meus projetos paralelos, sem precisar de grana pública, principalmente durante a Nós4. Depois que a banda parou, em 2012, foquei no meu novo disco e busquei trabalhar mais nesse mercado, mas não tive apoio na minha cidade. Os festivais daqui não me deram espaço pelo preconceito. Preferiram artistas que forjam uma vanguarda, alguns até sem disco gravado, ao invés de valorizar o meu esforço e ouvirem meu trabalho, sem qualquer recalque. Por isso, em 2014, foquei em reconquistar meu espaço na noite pernambucana. Precisava voltar a ganhar dinheiro para pagar as contas. Mas a obra está aí. Quem sabe um dia irão ouvir melhor o Terra ou o Chaka Nights, sem qualquer preconceito porque não faço a linha vanguarda forçada. Sou de verdade.
DA – Há planos concretos para um possível retorno da Nós4?
RICARDO CHACON – Nada concreto, apenas sondagens.
DA – Muitos artistas, sobretudo os independentes, têm aderido à prática do crowdfunding como forma de bancar seus discos e projetos. Mais do que uma perspectiva de sobrevivência, essa realidade aponta para uma negação ao modelo imposto pela indústria fonográfica tradicional? Há muito mais por trás disso?
RICARDO CHACON – É um modelo interessante para quem tem um público ou para quem consegue de alguma forma mobilizar uma galera, principalmente através das redes sociais. Mas para a grande maioria é difícil mobilizar e arrecadar a quantia suficiente. Mas não deixa de ser uma alternativa de conseguir o recurso.
DA – No caminho que vai do homem ao artista Ricardo Chacon, quais sentidos melhor definem a música em sua vida?
RICARDO CHACON – Eu tenho plena ciência da minha escolha, de seguir esse caminho de incerteza, mas também de um prazer que nunca encontrarei fazendo outra coisa que não seja cantar e estar no palco. Neste caminho, a persistência e a paciência são extremamente importantes. Como te respondi certa vez, meu trabalho não para por aqui. Estarei sempre em busca de um aprendizado maior e da verdade no meu trabalho, mesmo que isso não signifique sucesso para os outros, mas para mim estarei realizado.