Por Sérgio Tavares
A escrita criativa rende bons paralelos. O escritor Rafael Mendes encontra o seu melhor em Hemingway, nas páginas salubres de “O velho e o mar”: “Santiago lutou por dias para pescar o grande peixe. Ele queria pescá-lo para mostrar aos amigos, aos demais pescadores, dizer que havia conseguido. Contudo, depois de ter finalmente pescado, ele já não se preocupa tanto se levará ou não o peixe para a praia, para mostrar para os outros. Com o escritor é da mesma maneira: é melhor se preocupar em fazer um bom texto, com uma linguagem apropriada, personagens bens desenvolvidos, enfim, se preocupar com a pesca em si. Se conseguirá ou não publicar, ou, nessa analogia, levar o livro-peixe até à praia, não é tão importante”.
De peixes também trata seu novo romance, “Fôlego”. Os peixes-fantasma, os peixes-mentira produtos das pescarias de um pai que oculta um segredo. Traduzi-lo ou, de certa forma, exorcizá-lo é o motor que embala o fluxo de consciência do filho, agora adulto, a revisitar a infância marcada por momentos intransitivos de suspeitas e de aflições. O não-dito é o que provoca a ruína familiar. De fato, o desmoronamento inaudito de todos.
Mendes tem, em sua literatura, a simplicidade que significa o trato da pesca. Tal qual o velho Santiago, sabe que fisgar o peixe grande requer paciência e perícia. Levar o tempo necessário para conformar o universo ficcional, esmerar seus detalhes, desenvolver os personagens e suas motivações, escalar a melhor maneira de contar suas histórias. Chegar à praia.
Nesta entrevista, Mendes fala do fazer ficcional, do exercício de procura que cativa seus anseios e objetivos na composição de suas tramas. Mas também de educação, formação de leitores, mercado editorial, primeiro livro, autores contemporâneos e qual escritor convidaria para tomar umas cervejas. Tudo com a lucidez de quem defronta a imensidão do mar e sabe de suas certezas e de seus perigos.
“Ninguém pede pra gente escrever, a gente escreve porque gosta, porque não pode viver sem escrever. Portanto, se é para escrever por paixão, que se faça isso sem pressa, com cuidado e em busca, sempre, da excelência, ainda que ela seja inalcançável. E tem que saber que pode não dar certo, que a carreira por um motivo ou outro pode não vingar”. Embarque nesse papo e deixe que o curso das palavras lhe conduza.
DA – Nos contos de “A melhor maneira de comprar sapato”, antologia que marca sua estreia literária, há uma forte presença da infância como um período transformador, de ruptura, e até mesmo de formação precoce. Esse efeito se repete agora em “Fôlego”, romance recém-lançado. A que ponto existe aí o assombramento de elementos factuais? Partindo da premissa de que todo escritor recorre à memória em algum momento do processo criativo, de onde são resgatadas suas histórias?
RAFAEL MENDES – Recorro à memória para escrever, sim, mas não conto ou reconto a minha própria história. Eu diria que é mais uma memória coletiva, da minha geração, dos meus amigos e familiares. Tem muito de mim, obviamente, porque só se escreve sobre aquilo que se conhece, mas não posso dizer que meus textos são autobiográficos. A mim interessa mais as relações humanas, vêm daí as minhas histórias; quando conto um episódio da infância, na verdade eu estou contando as relações das pessoas em torno da criança-personagem: os pais, os amigos, a primeira namorada, os irmãos. Nós não lembramos de toda a nossa infância; lembramos de passagens específicas, que nos são caras por um motivo ou outro. E nessas passagens sempre há uma pessoa querida envolvida. São a essas relações que eu recorro para escrever.
DA – Porém, além da incidência da memória, há um intenso poder de observação nos seus textos, concorda? O conto que dá nome à antologia, por exemplo, em que uma mulher humilde resgata a lembrança de, quando menina, ir com a mãe comprar um sapato soa tão real que se assemelha a um fato acomodado na ficção. O quanto de realidade cabe na sua literatura? Há esse olhar um tanto de cronista no papel de contista?
RAFAEL MENDES – Concordo. A observação é fundamental no meu processo de escrita. É papel do escritor registrar o seu tempo, a sua sociedade, o seu país, embasado no seu olhar. Tchekhov, por exemplo, escrevia essencialmente para o povo russo, sem a preocupação em atingir ou não outras culturas. Vem dessa seara o magnífico conto “Os Mujiques”. A meu modo, tento fazer o mesmo: registrar a minha localidade, as pessoas comuns, gente que encontramos no trem ou até mesmo em uma loja de sapatos. Isto, é claro, aliado aos motes universais da literatura, como o amor, a perda, etc. Nesse aspecto, meus textos estão muito próximos da realidade, pois escrevo sobre fatos corriqueiros e conhecidos de muita gente.
DA – Onde, então, você encontrou os integrantes do núcleo familiar de ‘Fôlego’? Para onde precisou olhar para capturá-los?
RAFAEL MENDES – Olhei ao meu redor. A história da família de “Fôlego” é na verdade um apanhado de histórias de outras famílias, de amigos, de familiares, ou até mesmo de livros, filmes e notícias de jornal. Por isso referi-me a uma espécie de memória coletiva. As nossas histórias, alguns fatos da nossa vida de um modo em geral, tendem a se repetir com outras pessoas, outros lares. O que é narrado em “Fôlego” não é extraordinário: poderia ser a vida de muita gente, inclusive a do leitor. Talvez, por uma suposta empatia do leitor em alguns trechos, para com a família de “Fôlego”, leva-se a pensar que há no texto mais realidade do que ficção. Mas, ao aglutinar diversas histórias em uma única narrativa, e acrescer a essa narrativa uma linguagem e uma estrutura romanesca, o que prevalece é a ficção.
DA – E, ao retratar um núcleo de personagens humildes, pessoas simples, isso acaba por contaminar sua prosa que, diferente da tendência atual da literatura contemporânea, prima pela simplicidade, pela linearidade, pelo narrar cronológico. Essa é uma busca natural ou há uma motivação técnica nesse processo?
RAFAEL MENDES – Se eu busco retratar pessoas sem muitos recursos ou ambições, pessoas simples, é natural que minha literatura também caminhe no sentido da simplicidade, da concisão. Tento escrever como os meus personagens escreveriam, como eles pensam, com um léxico reduzido, sem inovações, mas com o cuidado para não descambar em um preconceito linguístico. Talvez haja a pretensão de que pessoas como as que eu retrato também possam ler o meu texto sem dificuldade. Isto, contudo, de maneira alguma é fácil. É a máxima do Graciliano: “Escrever fácil é difícil”. Assim, além da busca natural, há, também, uma intenção técnica no meu processo de escrita.
DA – Interessante essa mescla de pendor natural e técnica, pois acaba por desvelar um procedimento que oculta uma complexidade dentro de um escopo simples, sem cair na pieguice ou ser simplório. Falando em processo de escrita, conte um pouco da sua rotina. Qual o tempo reservado para sua literatura?
RAFAEL MENDES – Eu penso muito antes de escrever. Só parto para a escrita, propriamente, quando aquilo que quero contar já está pronto na minha mente. Esse processo pode durar meses, até anos. Observo as pessoas e o cenário que quero registrar. Nesse ínterim vou anotando, pesquisando, lendo. Depois parto para a escrita, que é outro processo dispendioso. Sinto-me muito realizado quando consigo escrever um parágrafo decente, em um dia trabalho. Em seguida, tem a reescrita, que é o que mais gosto. O ajuste das palavras, a estrutura dos parágrafos, o labor. Também trabalho com escaletas, plots, resumos. Faço detalhamento dos personagens, traço uma ordem cronológica, uso planilhas. Por fim, faço cortes, aparo as arestas, deleto parágrafos inteiros. Isto pode dar a entender que o processo é puramente técnico, mas às vezes a narrativa segue um caminho contrário ao que eu havia planejado, no início. Em Fôlego, por exemplo, há um personagem que, no meu planejamento, não morreria. No entanto, durante a escrita, entendi que somente a morte dele justificaria aquilo que é narrado, pois o tema principal do livro é a imprevisibilidade da morte e a impotência perante ela. Esses desvios no processo, esses descaminhos, me fascinam. Muitos escritores já disseram que alguns personagens ganham vida própria, enquanto estão sendo criados. É claro que, tratado de modo leviano, parece surreal; mas, analisando atentamente, é isto o que acontece. Qual o tempo reservado para a minha literatura? Eu diria que é todo o tempo.
DA – O cumprimento dessas etapas acaba por desmistificar a ideia que condena o escritor a ser refém de uma luz repentina, o poder etéreo da inspiração. O que há realmente, como bem disse, é labor. Mas existem diferentes tipos de manufaturas? Com uma antologia e um romance lançados, você entende que há uma técnica para se escrever um conto que se distingue daquela utilizada para a construção de uma narrativa longa?
RAFAEL MENDES – A mesma dedicação que despendo em um romance, aplico na construção de um conto. É natural que o tempo necessário para terminar um conto é menor, mas, ao considerar que também penso muito sobre o conto que quero escrever, antes da execução, diria que a manufatura é a mesma que a do romance. Existem aspectos que distinguem um gênero do outro: um conto moderno deve conter duas narrativas, uma aparente e outra oculta, nas entrelinhas, ideia defendida por muitos contistas e que eu corroboro. Fazer isto com precisão, contudo, requer muita disciplina. Já o romance é feito de camadas, a passagem de tempo é maior, os personagens são mais desenvolvidos, há mais de um tema abordado. Conto e romance são gêneros distintos; o autor que se predispõe a investir na escrita dos dois deve dedicar o mesmo esmero tanto a um quanto a outro, considerando as suas respectivas peculiaridades.
DA – No entanto essa passagem do conto para o romance é vista, por muitos editores, como um sinal de amadurecimento. Há uma ideia de que o conto seria uma prévia, um tipo de acúmulo de experiência para se angariar fôlego para a tessitura de um romance. Você se preocupou com isso? Dentro do seu projeto literário, estava programado o lançamento de uma antologia para marcar a sua estreia e, logo em seguida, partir para a narrativa longa?
RAFAEL MENDES – De modo algum eu programei lançar meus contos primeiro. Costumo brincar que os contos foram publicados no susto. Em 2011, eu havia concluído uma das versões de um romance, que permanece inédito, e minha intenção era publicá-lo. Antes disso, porém, eu reuni os meus contos; reli e reescrevi grande parte deles. Como era um volume o suficiente para uma antologia, resolvi enviar para duas ou três editoras. Queria mais testar o mercado, ver como funcionava o processo de submissão de originais. Não pensava que alguma editora fosse querer publicar o meu volume; mas a Karla Melo, da Confraria do Vento, leu e gostou. No ano seguinte, “A Melhor Maneira De Comprar Sapato” foi publicado. Depois disso eu me debrucei na conclusão de “Fôlego”, que acaba de ser lançado. Quanto ao meu outro romance, que a principio gostaria que marcasse a minha estreia, investi em mais um processo de reescrita.
DA – Qual foi a sensação de ter seu primeiro livro em mãos e como o enxerga hoje, depois de alguns anos?
RAFAEL MENDES – A sensação, num primeiro momento, é muito boa. Ter ISBN, o nome na capa, ver o seu texto com um acabamento, um bom projeto gráfico, como são todos os livros da Confraria do Vento, é muito legal. Mas antes de publicar eu já escrevia há alguns anos, vinha me preparando, de modo que sabia que mais cedo ou mais tarde sairia alguma publicação. O escritor inédito costuma se preocupar com isso, em ver o seu livro impresso, para mostrar para os amigos, os pares. Eu também me preocupava. No entanto, depois de publicado, a gente percebe que isso não é tão importante assim. Traço um paralelo com “O velho e o Mar”, do Hemingway: Santiago lutou por dias para pescar o grande peixe. Ele queria pescá-lo para mostrar aos amigos, aos demais pescadores, dizer que havia conseguido. Contudo, depois de ter finalmente pescado, ele já não se preocupa tanto se levará ou não o peixe para a praia, para mostrar para os outros. Com o escritor é da mesma maneira: é melhor se preocupar em fazer um bom texto, com uma linguagem apropriada, personagens bens desenvolvidos, enfim, se preocupar com a pesca em si. Se conseguirá ou não publicar, ou, nessa analogia, levar o livro-peixe até à praia, não é tão importante. “Mais importante é escrever”, disse o escritor paulista João Antônio.
DA – Digo isso porque, um pouco antes, você mencionou que tinha no original da antologia uma peça para testar o mercado editorial. Obviamente que, mesmo às cegas, você foi bem sucedido, com a publicação do seu livro. Mas, deixando isso de lado, qual a impressão geral que teve. Fazendo uma analogia com a visão do abismo, o mercado editorial brasileiro é uma queda tomada pela escuridão mais densa, no qual apenas alguns privilegiados têm o direito de brandir suas lanternas?
RAFAEL MENDES – Não vejo o mercado editorial como um vilão, como um abismo. O mercado é justamente isto, um mercado, que vive de receita. Se o processo está errado, se existem alguns privilegiados, todas as partes da cadeia possuem uma parcela de culpa: as livrarias, as editoras, os autores e até mesmo o leitor. Tem muita gente publicando atualmente. Existe muita oferta para pouca demanda; por isso é admissível que as livrarias exponham os títulos que mais vendem, as tendências do momento. São esses livros que pagarão os salários dos livreiros, dos distribuidores, etc. Da mesma maneira as grandes editoras, que sustentam o mercado, precisam de autores midiáticos, que atrairão público; só assim se paga um investimento em um ou outro autor iniciante, ou em um autor destinado a um público mais restrito. Se os autores que possuem destaque, por algum motivo que não seja a obra em si, são privilegiados? Não sei; talvez eles estejam no lugar certo, na hora certa. O que não é certo, para mim, é o descaso do governo com a educação, que pouco incentiva a leitura. Um autor também deve entender esse cenário, é mais fácil assim. Quem se predispõe a escrever literatura, tem que saber que “é uma arte feita por poucos, e para poucos”, como diria Autran Dourado. É claro que todo escritor quer ser lido pelo máximo de pessoas possível, mas esta não deve ser uma preocupação imediata. Um escritor com entendimento disso, para mim, consegue escrever com mais liberdade.
DA – Você cita pontos fundamentais para se entender a literatura brasileira, que vou dividir em duas perguntas. A primeira refere-se ao debute literário. Parece muito difícil, e até presunçoso, convencer um autor não-publicado de que o mais importante é trabalhar sua escrita, lapidá-la, buscar alternativas de publicação em blogs, sites literários, revistas, antes de evidentemente se preocupar em lançar o primeiro livro. Essa postura, inclusive, pode ser associada à inscrição em concursos literários que revelam autores. Preparar um original, visando a exclusiva participação em concursos. Você chegou a mandar algum original para um prêmio literário? O que pensa dessas oportunidades para escritores inéditos?
RAFAEL MENDES – Para mim, um autor que se convence disso mostra uma postura contrária à presunção. Um escritor deve saber de sua condição. Ninguém pede pra gente escrever, a gente escreve porque gosta, porque não pode viver sem escrever. Portanto, se é para escrever por paixão, que se faça isso sem pressa, com cuidado e em busca, sempre, da excelência, ainda que ela seja inalcançável. E tem que saber que pode não dar certo, que a carreira por um motivo ou outro pode não vingar. João Ubaldo Ribeiro dizia, sobre escritores iniciantes, que um “escritor tem que ter sorte, perseverança e talento. Talento inclusive para assumir, um dia, se necessário for, que não tem talento”. Se um escritor se preocupar em lapidar a sua escrita, buscar alternativas como blogs, revistas, etc., um dia acontecerá a publicação convencional, em livro. Isso é consequência de um trabalho. Eu, particularmente, publico muito pouco em formatos alternativos. Não tenho nada contra, acho válido, mas, como eu disse, não tenho pressa em ver meu texto publicado. Sobre os concursos, eu os considero importantíssimos. É uma forma de balizar uma carreira que está começando, de incentivar. Nunca participei de nenhum concurso porque meus textos costumam não se enquadrar nos formatos que os editais pedem. Normalmente tem que ter um número mínimo de laudas, que meus textos não alcançam. “Fôlego”, por exemplo, é um texto bem reduzido; é um romance, em sua estrutura, “inacabado”. Por isso ele é pequeno. Não faria sentido eu aumentar a narrativa, acrescer algo supérfluo, somente para preparar o texto para um concurso. Então eu estou fora do páreo, não concorro. Os autores que submetem os originais a concursos são lidos por autores e críticos de renome, e vencem, eu os admiro.
DA – A segunda cabe à relação entre leitor e aumento da publicação. Há uma enorme desigualdade aí, não acha? O que me parece é que temos, hoje, uma realidade onde, se muito, autores leem autores. Penso que é uma questão de educação, sim, mas não se resume a isso. Um exemplo é que livros estrangeiros lideram a preferência de leitura e vendem muito bem. O que pensa dessa equação? Por que os autores contemporâneos brasileiros não despertam o interesse dos leitores daqui?
RAFAEL MENDES – O que vende bem no Brasil, salvo exceções, são os romances norte-americanos. Romances que já saem fadados a virar filme, no futuro. São roteiros adaptados, livros feitos nos moldes para atenderem à indústria de entretenimento. Este é o mesmo fenômeno que acontece nos nossos cinemas: raramente se vê um circuito de filme nacional, nas grandes redes, nos shoppings. O que entra em cartaz são os blockbusters. No teatro é a mesma coisa: as peças que recebem os maiores investimentos são as adaptações de musicais da Broadway. Muito se fala em globalização, mas o que é feito com a cultura é uma americanização. Penso que o governo deveria ser mais incisivo quanto a isto; não com normativas, com imposição, mas, insisto, com educação. Temos que formar leitores exigentes. Dois terços da população brasileira são analfabetos funcionais, e isto é uma vergonha. Os autores contemporâneos brasileiros escrevem textos aprofundados, que despertam o pensamento crítico e exigem uma compenetração maior, na leitura. Acontece que a nossa população, em sua maioria, e infelizmente, jamais teve acesso a isto, e prefere uma literatura mais fácil.
DA – Essa é uma discussão muito interessante. Vejo aí também uma influência direta das escolas secundárias que, ainda hoje, exigem que o aluno, no período em que está cultivando sua formação literária, leia os mesmos livros que há 30, 40 anos, estes constituídos por uma linguagem erudita e temáticas estranhas à sua época. Penso que autores como Luiz Vilela, Fernando Sabino, Clarice Lispector, entre tantos outros, seriam muito mais atrativos, mais empáticos do que aqueles cujas leituras são exigidas exclusivamente para a solução de uma prova. Não acha que, depois de cumprida a alfabetização, há aí um outro erro?
RAFAEL MENDES – Sim, há mais erros. A questão não passa somente pela alfabetização. No Brasil dá-se muito valor ao ensino técnico, que é primordial para a construção de um país, mas se esquece um pouco das ciências humanas, nos estudos. Em escola pública quase não se vê mais aula de educação artística, de filosofia, de sociologia. Essas matérias são primordiais para o desenvolvimento do raciocínio de um aluno. É isto que fará com que ele tenha capacidade de compreender um texto constituído de uma linguagem mais apurada, com temas e questões que não são ditas abertamente, mas sim requerem interpretação. Machado de Assis, José de Alencar, e até mesmo Fernando Sabino e Clarice Lispector, são autores para se embrenhar depois de já se ter lido pelo menos uns dez ou quinze livros, e não no período escolar, com o indivíduo ainda em formação. Isto só afasta a leitura e a literatura desse aluno, pois ele não tem, ainda, capacidade de entender. Mas é claro que esta questão passa também por outras esferas, outros campos do ensino; o problema não é uma exclusividade da literatura.
DA – Por falar nisso, como foi sua formação literária? Quais autores seguiram lhe acompanhando até os dias de hoje?
RAFAEL MENDES – Eu ainda estou em formação. Tem muito autor essencial que ainda não li. O que aprendi até o momento se deve aos de sempre, os imprescindíveis para quem quer escrever literatura: Machado, Tolstoi, Faulkner, Dostoiévski, Flaubert. Gosto muito de Mauriac, do Raymond Carver, de Sandor Marai. Dos contemporâneos, gosto do Pamuk, do Coetzze, do Milton Hatoum, do Bernardo Carvalho. A lista é muito grande. Também gosto de ler os caras da minha geração, o Rafael Gallo, o Sérgio Tavares, o Daniel Lopes, o Victor Paes, o Marcelo Nocelli, o Maikel de Abreu, a galera que está viva, que eu posso encontrar de repente no metrô, na mesa de um bar, ou que eu posso trocar mensagens no Facebook.
DA – Agradeço pela menção. É curioso quando fala do autor vivo e disponível, pois somos de uma geração em que o escritor era uma figura inalcançável ou morta, um tipo de entidade. Hoje, o autor é o cara do banco, a moça da padaria, o sujeito que cruza contigo no elevador. Isso acaba por me levar a uma analogia, tomando emprestado a célebre frase do Mário de Andrade: ‘Conto é tudo o que chamamos conto’. Você acredita que literatura é tudo o que chamamos literatura?
RAFAEL MENDES – Literatura é tudo o que chamamos de literatura. O problema é que existe muita literatura ruim.
DA – É mais suportável ler um romance ruim ou um conto ruim?
RAFAEL MENDES – Como leitor, é mais suportável um conto ruim, se pensarmos que esse conto pode estar dentro de uma antologia. De fato é muito difícil acertar um livro inteiro de contos. Com um romance ruim é pior, porque afinal é um livro todo. Mas isso é relativo: às vezes, o conto ou romance pode ser bom, e é o leitor que não o compreendeu, que não era o leitor ideal para aquele texto, naquele momento. Como escritor, a leitura de uma literatura ruim é até benéfica, pois se pode aprender a como não escrever, através dela.
DA – É difícil lidar com literatura ruim de amigo?
RAFAEL MENDES – É difícil lidar com a minha própria literatura. Sou muito autocrítico, não gosto de mostrar nada que escrevi, aos meus amigos, antes de considerar o texto pelo menos legível. Então escolho uns dois ou três colegas, que se predispõem a ler, e peço opinião. Com os amigos que me pedem leitura, costumo fazer o mesmo; se o texto ainda não foi publicado, costumo ser bem rígido, tento apontar algumas falhas pontuais, pois sei que é isso o que meu amigo quer. Se o texto já foi publicado, não digo que é difícil de ler – pode ser que eu apenas não seja o leitor ideal, naquele momento – mas, se eu não gosto do texto, prefiro manter silêncio e esperar pelo próximo trabalho desse amigo.
DA – Há pouco você mencionou a possibilidade de se encontrar com autores da sua geração na mesa de um bar. Se pudesse tomar uma cerveja com um escritor, vivo ou morto, qual seria e sobre o que gostaria de falar?
RAFAEL MENDES – Se pudesse escolher um, seria o William Faulkner. Não sei se ele beberia cerveja comigo, mas eu fumaria cachimbo ao seu lado. Falaríamos sobre Caddy, personagem de “O Som e a Fúria”, sobre a falta de tempo e de estabilidade financeira para escrever, e sobre a sensação – depois de anos, e mesmo recolhido em uma fazenda no sul dos Estados Unidos – de ver o reconhecimento do seu trabalho, com o prêmio Nobel de literatura.
DA – Nesse papo, você falaria também do futuro da sua literatura? O que vem aí, depois de “Fôlego”?
RAFAEL MENDES – Não me atreveria a falar com Faulkner sobre a minha literatura. Além de Fôlego, como disse antes, tem um outro romance que considero pronto, que também trata sobre a perda abrupta de alguém, e as consequências que essa perda acarreta. Esse romance continua o panorama da periferia de São Paulo, iniciado em Fôlego, e o retrato é ainda mais abrangente. O romance é mais social. Um outro romance, que continua a tratar desses temas, está em processo de escrita. E aí eu encerro esses assuntos, com os três livros. Tem muita coisa na minha gaveta, coisa até demais – acho que é isso que vou fazer agora: jogar fora alguns rascunhos guardados na gaveta do meu criado-mudo.
DA – Esse gesto comprova, para você, aquela máxima de que livro nunca fica pronto, o escritor é que se liberta do texto?
RAFAEL MENDES – Sim, comprova. O livro só está pronto se publicado. E, às vezes, até publicado, relendo, dá vontade de reescrever uma frase ou outra.
DA – Se escrever é esse exercício incessante que, mesmo depois de concluído, não parece estar pronto, por que então seguir escrevendo?
RAFAEL MENDES – Escrevo porque não sei fazer outra coisa além disso. Escrevo porque acho que têm algumas histórias que precisam ser contadas, ou recontadas, para dar voz às pessoas que vejo na rua, que escuto falar, que vejo no jornal, e não têm como se expressar. Escrevo para me calar, para não sair gritando por aí, feito um louco. Escrevo para me acalmar. Escrevo porque amo escrever. Reescrevo porque sei de uma infinidade de pares que já escreveram muito melhor do que eu, e eu preciso tentar alcançar esses escritores, ainda que seja impossível. Escrevo por um sentimento de inadequação. Escrevo para viver. Também escrevo para morrer e, quem sabe, um dia, ser lembrado.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala” (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Tem textos publicados em jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais. “Queda da própria altura” (Confraria do Vento, 2012), sua obra mais recente, foi finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura.