Por Fabrício Brandão
Jamais sorveremos o ar da perfeição. Quiçá consigamos algo que nos aproxime de um ponto de equilíbrio, alguma ínfima fração de ponderação entre acertos e desvãos. Vez por outra, alguém relembra-nos o quão imprecisos somos no quesito das certezas. Seria presunção demais apostar em cenários bem definidos quando o alvo é compreender a natureza humana?
Eis uma instigante questão. Por enquanto, ainda está longe ser possível estimarmos a dimensão das virtudes ou das quedas. Ousemos apenas respirar e seguir adiante construindo moradas na superfície das horas. Nesse ínterim, a nossa capacidade de abstração e mergulho pode, sobremaneira, fornecer-nos pistas valiosas sobre o que de fato nos tornamos. No diapasão que contém passado, presente e futuro, há algo além da materialização do pensamento em ações. Resiste a memória como peça fundamental da existência.
Nada melhor do que percebermos a visão que um determinado criador tem sobre o universo através do qual orbitam suas expressões, principalmente quando esse mesmo agente credita à memória um status de significativa importância. Assim o faz o escritor baiano Dênisson Padilha Filho quando lhe cedemos escutas. Mas ouvi-lo não é o bastante. Ler seus escritos revela-se um componente essencial para apreendermos um mundo no qual as perspectivas são múltiplas no quesito inquietude. Sentir-se incomodado parece ser um ingrediente especial na concepção criativa desse autor que, além de dedicar-se à literatura, é também roteirista de audiovisual.
A trajetória de Dênisson com as palavras está materializada em livros como “Aboios celestes” (contos – 1999), “Carmina e os vaqueiros do pequi” (romance – 2003), “Menelau e os homens” (contos e novelas – 2012) e, mais recentemente, “O Herói está de folga” (contos – 2014). A consistência presente ao longo de sua obra é o grande motor que move a entrevista que realizamos com o autor. Seja na capacidade de construir imagens ou na dimensão que edifica o texto, Dênisson demonstra sua propriedade narrativa porque fez da leitura a gênese de seu ofício. Entrevistá-lo é desconfiar que, por trás das letras, habita um território de coisas insondáveis.
DA – “O Herói está de folga” é título emblemático, que nos sugere percursos já em sua aparência nominal. As histórias nele contidas desnudam certa condição humana. Vivemos num tempo de desesperança?
DÊNISSON PADILHA FILHO – São nove contos que sugerem que os homens são virtude e vício. Naturalmente, são representações, alegorias, fantasias criadas sobre o arcabouço de desvio e de retidão que nos estrutura. Ter esperança não muda as coisas, a não ser pra quem a sente.
DA – Nesse caminho que perpassa altos e baixos da natureza humana, seu sentimento de autor prefere o estranhamento ou o espanto?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Estranhamento é condição fundamental para nascer a arte, não é? E causar estranhamento também. A literatura convoca o leitor não quando traz respostas, mas quando o inquieta com aquelas perguntas adormecidas que nos estruturam e desafiam nosso dia a dia. A literatura é vingativa na medida em que mostra que nós não temos respostas nem saída, mas por ela dizemos, “aqui estamos, Papai do Céu, estamos no mato sem cachorro, mas não pense que não sabemos”. Já espantar-se com as oscilações da natureza humana beiraria o patético. Essa perplexidade soa meio fresquinha; não combina com a literatura.
DA – Diria que a lucidez foi uma companheira inseparável na concepção do seu mais novo livro?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Acho que a idade trouxe um pouco mais de tentativa de lucidez e amadurecimento, ainda bem. É como se a pulsão que nos move a escrever ganhasse algo mais de serenidade e consciência de que o texto custa a estar pronto. Considero que meu caminho literário deu uma guinada a partir dos 37 anos (estou com 44). Foram novos conceitos, menos preconceitos estéticos. A visão de mundo e a lucidez se refletem, naturalmente, mas o que vou procurar fazer é sua recriação. A matéria prima é a verdade, a concretude, sem dúvida; mas a literatura se ocupa de alegorizar a vida e seus achaques.
DA – O ato de escrever encerra alguma espécie de libertação?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Libertação nenhuma. Muito pelo contrário. Embora a literatura seja a arte de fantasiar e reinventar – não só a língua, mas o mundo –, recorremos sempre à memória, porque, para nosso desconforto, é só o que temos. Da memória, derivam a dor, a culpa e a saudade. Há um mito muito citado que diz que quando realizamos uma história, processamos as coisas e nos livramos delas. Uma coisa nada tem a ver com a outra, a meu ver. O escritor se distancia um pouco do mundo para criar, é verdade; isso traz uma analgesia, claro, mas nada de libertação. Se liberta, não é literatura.
DA – A pungência de uma cronologia interna toma conta de seres e lugares em “O Herói está de folga”. Assim, a sucessão dos instantes não é materialmente mensurável. Quem é este ser a quem chamamos tempo?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Eu não tenho certeza, mas desconfio que dentro de uma lógica divina, passado, presente e futuro são a mesma coisa. Nada vem, nada vai, nada existe, tudo é. Essa minha perspectiva naturalmente vai se refletir aqui e ali na minha criação; foi assim nos contos de “O herói está de folga”. Tudo está ali, os contos são quadros, e como toda alegoria da vida, os quadros não passam; a gente passa por eles. Isso confirma minha impressão de que as coisas não vêm, nem vão, simplesmente são; a gente é que passa por elas.
DA – “Menelau e os homens” é um livro especial pelo modo como os trajetos narrativos ali se constroem, sobretudo pela disposição das imagens, o que acaba por envolver o leitor. Qual o sentido maior dessa obra para você?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Concordo com você, “Menelau e os Homens” é um livro especial. Traz duas histórias marcadas pelo signo da memória. Em consequência disso, seus personagens são homens fugindo de homens e fugindo de si. A primeira fase da obra do escritor estadunidense Elmore Leonard teve muita influência sobre a concepção das histórias. A segunda história que integra o livro – a novela Calumbi – está marcada também por um signo de opressão e terror psicológico, um pouco de Edgar Allan Poe; mas em todo o livro há situações de perseguição e suspense entre caçador e caçado; são tributos meus ao autor de Hombre e O último posto do Rio Sabre e de tantos outros. Creio que tenham sido de fundamental importância as sugestões de imagens e paisagens no livro para que o leitor sentisse todos os momentos de impotência, opressão, perseguição que as histórias propõem. Bem, sobre qual sentido maior dessa obra, devo dizer que não há o grande sentido. Eu costumo dizer que a literatura em prosa não deve ser regida apenas pelo plano do conteúdo, ou melhor, pela dimensão narrativa; mas também pela dimensão estética. Acho que o sentido, desse e dos meus outros livros é tentar alcançar esse equilíbrio. Em outras palavras, inquietar pela narrativa e reinventar a palavra. Não é fácil, mas é um desafio que resolvi encarar.
DA – É razoável pensar que, por mais que tente, um autor não pode fugir de si mesmo?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Se pensarmos do ponto de vista da existência, teremos que parafrasear Antônio Cândido e dizer que a matéria prima do escritor é a memória. Por outro lado, se pensarmos na arte literária e em procedimentos estéticos, devemos pensar que o escritor dotado de um mínimo de consciência do seu fazer só se satisfaz quando viola seu modelo anterior. Porque arte é ruptura e, embora faça parte do grande campo da cultura, especificamente, ela, quando repetida, contraria suas próprias motivações. Nesse sentido, não conseguir fugir da memória, fugir de si, e encontrar saídas estéticas é um paradoxo que alimenta esse fazer artístico.
DA – Sob o ponto de vista autoral, há quem considere o conto uma espécie de escalada para o romance. O que pensa a respeito?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Vou confessar minha preguiça para responder essa (risos). Sinceramente, não há consideração mais sem sentido do que essa que dizem por aí. Posso ficar aqui citando à exaustão nomes de escritores, grandes mestres, que se eternizaram como contistas. E por que será que ficaram nessa tal “escalada” por toda a vida? Não! É um erro crasso, uma ingenuidade, até bonitinha, achar que o conto é rito de passagem para um romance. São pretensões diferentes; no romance há lugar para digressões que não vão caber no conto. Enquanto que, grosso modo, no conto, a concisão vai fazer pulsar a dimensão estética do texto muito mais do que num texto longo. Além de outros aspectos que não caberiam aqui. Apesar de discordar radicalmente e achar isso um equívoco, reconheço que é um erro muito difundido. Veja por exemplo, na América Latina, a grandeza de Carlos Fuentes – que além de romances e novelas, também exercitou o conto largamente – e Juan Rulfo. Embora notabilizados mundialmente, não alcançaram a popularidade de Gabriel García Márquez, eterno pelos seus romances. Parece que até o mainstream mercadológico insinua, “sem querer querendo”, que o texto longo é o ápice.
DA – O que mais chama sua atenção na literatura feita no Brasil hoje?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Não estou tão certo quanto à resposta, mas acho que é a diversidade do que se produz. Há muita gente talentosa, de carreira sólida, e também surgindo. Vou esquecer o nome de muita gente que faz boa literatura, para além de José Inácio Vieira de Melo, Menalton Braff, Antônio Carlos Viana, Mayrant Gallo, Gustavo Rios, Lupeu Lacerda e Sérgio Faraco. Aqui tem de tudo, meu amigo. Por outro lado, isso não é tão positivo quanto parece, é uma constatação um pouco desanimadora, porque há muita coisa sendo chamada de literatura. Há um batalhão de gente fazendo ‘coisinhas bonitinhas’, interpretação enviesada da magnitude estética Manoel de Barros, arremedos de minimalismo; é gente que acha que basta que o besourinho seja citado para que se faça minimalismo. Vivemos a maior concentração de Bukowskis por metro quadrado de todos os tempos. O santo nome da corrente brutalista está sendo evocado de forma leviana por gente que coloca um punhado de tiros no enredo, dois palavrões e uma cara de mau na orelha do livro e pronto. Além disso, há a produção de muita coisa ruim mesmo. Muito texto ruim, muita gente sem leitura, sem estofo literário se arvorando a lançar livro. Não, não posso conceber que, por exemplo, um organismo seja rico em ferro, se não consome alimento rico em ferro. Sem consumir literatura sistematicamente, portanto, como um sujeito pode criar arcabouço? É muita ilusão de potência, mas isso é imanente ao homem, não tem jeito. Eu não consigo conceber a carreira de um escritor de verdadeira literatura (e não me pede pra explicar, por favor) sem uma rotina de investigação literária e leitura contumaz.
DA – O ato laborioso de escrever pode ser tido como um processo permanente de desconstrução?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Ainda hoje cedo pensava em algo parecido. Toda desconstrução pressupõe um mínimo conhecimento, por dentro, de como foi feita a coisa a ser desconstruída, não é? Senão é só uma implosão energúmena.
DA – O quanto Dênisson Padilha Filho conhece Dênisson Padilha Filho?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Quase nada. Cada dia que nasce é uma nova muralha de Jericó.
DA – O que você não endossa nesse estado de coisas chamado pós-modernidade?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Desconfio que, em qualquer tempo, viver é tatear numa sala escura. Nesse nosso tempo, não acho que as incógnitas são mais numerosas que em outrora; acho que sempre foi assim.
DA – Somos algo além de uma matéria arremessada para o fim?
DÊNISSON PADILHA FILHO – Por enquanto, somos só esses bonequinhos de carbono mesmo. Depois é outra história, a orfandade acaba, a queda acaba. Mas isso é depois, bem depois.
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Ótima entrevista de um grande escritor.
Embora discorde de muita coisa dita nessa entrevista, gosto muito da literatura do Dênisson.