Por Sérgio Tavares
A primeira correspondência que Paula Dip recebeu de Caio Fernando Abreu foi um bilhetinho insolente, com ares de intimação. Prenunciavam-se os anos 80, e ambos trabalhavam na editora Abril, em redações convizinhas. À época, Paula organizava uma festa de comemoração de seu aniversário e Caio não figurava na lista de convidados. Foi então que aterrissou sobre a mesa da jovem jornalista a seguinte mensagem: “Todos já receberam o convite para o seu aniversário; por acaso você teria se esquecido de mim ou ainda posso ter esperanças de ser convidado? Sei que a festa é amanhã e prefiro pensar que foi uma distração de sua parte; detestaria imaginar que foi proposital”.
Conhecido pelo temperamento forte (e volátil), essa era, na verdade, a maneira de Caio dizer para Paula que queria ser seu amigo. Ele foi convidado para a festa, naturalmente, e a amizade se configurou por vinte anos. Paula viu, de muito perto, o jornalista se tornar escritor, dramaturgo, roteirista; ganhar prêmios; morar fora do país; retornar; sofrer por amor; sobreviver à ditadura militar; descobrir-se portador do vírus HIV; morrer. Durante esse período, eles trocavam inúmeras cartas, que ficaram guardadas por uma década, esperando que o intolerável da ausência desse trégua e os amigos pudessem se reencontrar naquele tempo retido no papel.
A volta às cartas, afinal, deu forma ao livro “Para sempre teu, Caio F. – Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu”, lançado em 2009. Sucesso de público e de crítica, o misto de memórias e correspondências inspirou um premiado documentário de mesmo nome. Agora, uma nova compilação de cartas vem a público, outra vez organizada por Paula Dip. Em “Numa hora assim escura”, a jornalista se debruça sobre as missivas trocadas entre Caio F. e a escritora Hilda Hilst, entre os anos 70 e 90. O lote, até então inédito (alguns envelopes ainda se mantinham lacrados), revela duas pessoas que, através de um vigoroso laço afetivo, completaram-se artisticamente e forneceram, ainda que de maneira incidental, um panorama precioso de suas épocas, sobretudo no que diz respeito à literatura.
Os textos epistolares remontam a um Caio recém ingressado na vida adulta, com a cabeça tomada pelos cabelos compridos e um tanto de ideais, que se muda para a mística Casa do Sol, em Campinas, onde Hilda havia se refugiado para se dedicar à literatura, após uma vida de luxo e matrimônio. A relação dos dois, a princípio de pupilo e mentora, pouco a pouco se fortifica num pacto de amizade, que durou por toda a vida, e que foi inestimável para a formação literária de Caio. Prova disso é que nunca se desligaram, fosse qual fosse a distância geográfica, fosse qual fosse a gravidade das circunstâncias. As cartas os uniram na vida e na morte.
Em entrevista exclusiva à Diversos Afins, Paula Dip expõe detalhes sobre esse encontro incomparável entre dois de nossos principais autores contemporâneos, rememora sua própria convivência com o amigo, revela particularidades do escritor e reflete sobre seu papel de proteger e dimensionar o legado de Caio Fernando Abreu. Além disso, fala sobre novos autores, literatura feminina, o reconhecimento da obra de Caio F. por parte de uma nova geração de leitores e a experiência de se reconstituir parte de uma existência através de relatos contidos no secreto da troca de cartas. “Reorganizei a obra de ambos de um novo ponto de vista: a amizade que os uniu, confidências, afinidades, as brigas, as gargalhadas. Desenhando uma linha do tempo com suas cartas, contos, gritos e sussurros. Foi uma viagem deliciosa”.
DA – O Caio era alguém que acreditava no esotérico, em planos astrais, na incidência do sobrenatural no dia a dia. No prólogo do novo livro, você escreve que esse volume de cartas chegou a você “como num passe de mágica”. Depois da ótima repercussão de “Para sempre teu, Caio F.”, livro seu que serviu de matéria para um premiado documentário, acredita que, de alguma forma, ele queria que esse pacote terminasse contigo? Que você continuasse protetora do legado dele?
PAULA DIP – Caio dizia que, além de ser escritor, sempre quis ser um mago “como Cortázar”, em quem se espelhava. Desde muito jovem estudou astrologia, espiritismo, foi Rosacruz, aproximou-se do candomblé, do Santo Daime, consultava cartomantes, videntes, jogava I Ching e Tarô. Quando conheceu Hilda Hilst, desenvolveu ainda mais seu lado místico. Assim que ficamos amigos, ele leu minha carta astral e analisou minhas revoluções solares algumas vezes, fez o mapa da minha filha quando ela nasceu, de tal forma que, com a convivência, aprendi a entender e a respeitar os sinais que, segundo Caio, o universo nos envia; basta estarmos atentos e fortes, ele dizia, citando Caetano e Gil. Visitava sempre sua mãe de santo no Rio, Sonia de Oxum Apará, e aqui em São Paulo certa vez me levou a um terreiro para visitar um pai de santo. Quando chegamos ele ficou muito à vontade, participou da roda, cantou, dançou e pediu a benção aos orixás. Eu assisti de longe, não tive desenvoltura para participar da festa e nem para me entregar ao ritual que ele parecia conhecer bem. Sempre fui cética. Depois disso ele não me convidou de novo para tais atividades, mas eu sempre respeitei seus credos. “Yo no creo em brujas pero que las hay, las hay”, diz o ditado, e por tudo isso, passei a prestar atenção aos sinais. Nos anos 80, eu e Caio fizemos um pacto que respeito até hoje de escrever nossa história e tornar públicas suas cartas. Quando Caio morreu, em fevereiro de 1996, por exemplo, eu morava fora, não havia internet ou celular, só fui saber da morte dele alguns dias depois. Eu vivia em Boston, era inverno, uma madrugada houve um acidente de carro na frente da minha casa, um rapaz morreu dentro de um carro que pegou fogo. Eu nunca havia visto nada tão impressionante e quando soube que Caio havia falecido justamente naqueles dias, fiquei muito sensibilizada. Aquilo parecia uma premonição, um aviso. Outro exemplo: quando esse pacote de cartas dele para Hilda veio parar em minhas mãos, pensei até em fazer uma tese de mestrado a partir delas, mas acabei decidindo publicar o livro. Logo no início do trabalho fui atrás da bibliografia de Hilda e encontrei um livro dela, “Tu não te moves de ti”, que ele me presenteou em 1980, com um bilhete/dedicatória, que estava perdido há 30 anos na minha biblioteca, outro sinal. Falo disso no meu livro novo, publico um fac símile do bilhete. Hilda combinou com Caio que ele viria visitá-la depois de morto para garantir que havia vida após a morte, e ela contou que ele esteve na Casa do Sol algumas horas depois de morto, para lhe mostrar que estava bem, conforme haviam combinado. Ele era um cara que cumpria suas promessas, um amigo muito leal. Não estou sozinha nisso, muitos outros amigos de Caio se sentem assim, ligados e atentos aos seus sinais. Tudo isso faz parte da lenda de Caio Fernando Abreu, mas acima de todos os mitos e mistérios sobre sua pessoa, o que importa é que ele foi um escritor talentoso que merece ser lido e cultuado. Finalmente respondendo à sua pergunta, não sei se ele queria que o pacote de cartas terminasse comigo, ou se desejava que eu protegesse seu legado, mas acredito em seguir minha intuição no sentido de levar a publico cartas, textos, conversas, memórias, e todos os inéditos de Caio que chegarem às minhas mãos.
DA – Você conta, no livro, que conheceu o Caio na redação da editora Abril, onde firmaram uma amizade que durou 20 anos. Ainda assim, há algo nessas novas cartas que a surpreendeu durante a leitura? Há, em algum aspecto ali, um Caio que não conhecia ou não sabia que existiu?
PAULA DIP – O que mais me impressionou nesse pacote com parte da correspondência entre Caio e Hilda é a juventude, o frescor do texto. Quando o conheci, entre as redações das revistas Pop e Nova, Caio estava com 30 anos, já morara dois anos na Europa, tinha livros publicados e premiados. À época, ele escrevia os primeiros contos do livro “Morangos mofados”, lançado em 1982, pela Brasiliense. Até hoje guardo um bilhete dele se convidando para minha festa de aniversário, o início de nossa amizade. Aos 17, Caio escrevia o romance “Limite branco”, quando decide se mudar para São Paulo e depois para a Casa do Sol, em 1968. Hilda é autora da epígrafe e editora do texto final desse romance. As cartas falam exatamente desse momento. Fiquei encantada com aquelas confissões de menino, sonhos e perrengues de final de adolescência; a vocação do escritor, o precoce amor às palavras. Nas primeiras cartas que envia a ela do Rio, em 1970, Caio menciona Caetano Veloso, Antonio Bivar, Luiz Carlos Maciel, ídolos no nosso tempo, como sendo os papas da contracultura. É o deslumbramento de uma geração. Caio diz a Hilda que “é uma loucura a lucidez e a abertura espiritual que eles têm”. Eu que só fui ver Caetano rebolando no palco do TUCA, em São Paulo, com os Tropicalistas, fiquei encantada. Caio, assim como Caetano, era artista plástico, desenhava, fazia colagens que às vezes transformava em cartas, com estrelinhas, entrelinhas, anúncios, desenhos, detalhes. Cartas lindas, apaixonantes. Não é por acaso que o livro fala de uma paixão literária.
DA – O conteúdo das cartas é marcado por uma sobrecarga de afeto, em especial a admiração e o carinho que Caio demonstrava pela Hilda. Muito mais que uma confidente ou uma amiga, a figura da grande escritora que já era, quando se conheceram, mostra-se fundamental para a formação da escrita do jovem autor. Obviamente que havia nele um talento nato, contudo o quanto acredita que o convívio, naquele exato período de sua vida, tornou a Hilda imprescindível para a literatura de Caio?
PAULA DIP – Mais do que imprescindível, Hilda foi um bálsamo na vida de Caio F. A vivência de quase dois anos, que tiveram na Casa do Sol e continuou por toda a vida, foi troca fundamental para a formação literária dele. Afinal ele era um garoto de 19 anos! Teve acesso à biblioteca completíssima e principalmente aos escritos dela, às suas ideias. Eles se reconheceram imediatamente no amor à palavra. Caio virou assistente, ela ditava textos num gravador que ele depois datilografava numa operação crucial que o fez ouvir a própria voz desafinada e fazer exercícios para encorpá-la. A voz engrossou e o milagre foi atribuído à figueira mágica, claro. Caio aprendeu com Hilda a ler seus textos em voz alta, e a dedicar muitas horas de seu dia à escrita e à leitura. Buscar na palavra a sua superação. Assim nasceu a lenda esotérica que até hoje envolve os dois. Hilda era educada, culta, levava uma vida original, reclusa e ao mesmo tempo cercada de mil pessoas interessantes. Foi uma moça bonita, rica e badalada na capital paulista, onde estudou direito no largo de São Francisco. Namorou Deus e o mundo. E fugiu do carrossel de paixões e viagens ao redor do mundo, aos 35 anos, quando largou tudo para viver numa casa de campo, para escrever seus poemas e focou em sua obra genial durante o resto de seus dias. A Casa do Sol tornou-se um espaço de reflexão, estudo, até hoje referência para artistas, poetas, escritores, cineastas. Acredito que ele foi muito influenciado por ela, e vive versa; Hilda aprendeu muito com Caio. Ela foi o mestre e ele o aprendiz, mas é dos grandes encontros praticar a alteridade, e certamente eles trocavam de lugar. O rapaz trouxe o frescor da juventude, enquanto ela o confortou com a sabedoria da maturidade. Até conhecer Caio, Hilda só havia escrito poesia. Em 1970, publica “Fluxo-Floema”, seu primeiro mergulho na ficção, e dedica a ele um conto, “Lázaro”, para mim um dos mais belos da língua portuguesa. Logo depois, Caio publicou “Limite Branco”, seu romance de formação, cujos capítulos ela editou, escreveu título e epígrafe. Um verdadeiro encontro de almas.
DA – Numa das cartas que escreveu em Londres, Caio faz um comentário bem mordaz sobre um livro póstumo da Clarice Lispector: “Acho que ela morreu na hora certa, porque tava repetindo demais a receita”. Um pouco antes, você relata que Caio trazia, da juventude, uma obsessão literária por Clarice que, depois de se relacionar com Hilda, veio ao chão. O que se tornou essa paixão, afinal, para Caio, a ponto de ele trocar até de musa?
PAULA DIP – Caio se encantou com Clarice na adolescência, quando as paixões são fortes, platônicas e eternas. Eles viveram coup de foudre, tipo um romance muito avassalador que não existe mais, irmão do amor à primeira vista, que é mais como um soco no peito. Clarice o convidou para se sentar ao seu lado e o chamou de “meu Quixote”, numa noite de autógrafos em Porto Alegre, e, embora tenham trocado telefones, nunca se viram. Ele deu sorte na escolha da musa, dona de uma energia tão mágica e misteriosa que alguns a chamavam de bruxa. Como não amar tal musa? Caio se apaixonava perdidamente por suas musas. Seu texto foi marcado pela profundidade abissal de Clarice. E o amor pela musa nunca morre, amores e musas se acrescentam. Clarice era distante, calada; Hilda, um turbilhão. E Caio não esteve perto da Lispector no cotidiano, como aconteceu com Hilda. Bastou ele chegar à Casa do Sol e outro coup de foudre. Eles imediatamente diziam tudo, riam de tudo, brigavam por tudo, duas crianças. Quanto ao comentário ferino que você cita, é a cara dele! Caio perdia um amigo, mas não perdia a piada. Exercia um humor ferino, era witty como poucos. Para ele, poder zombar por escrito de Clarice, numa carta para Hilda, era como provar a si mesmo que a fila andava e que o futuro ainda lhe reservaria muitas musas, graças a Deus.
DA – Por outro lado, apesar da quantidade de missivas que remetia dentro e fora do país, Caio chegava a ficar meses sem receber uma resposta de Hilda. Proporcionalmente, aliás, as cartas enviadas pela escritora parecem bilhetes diante dos textos de várias páginas escritos pelo autor. Qual a relação que faz disso? Ainda que trocassem impressões e laços fortes de sensibilidade, percebe que existia nele um interesse mais grave, um apreço que não era correspondido à mesma altura por ela?
PAULA DIP – Hilda morava no campo, raramente checava a Caixa Postal que ficava longe, no Correio da cidade. E as cartas já estavam velhas, talvez não achasse necessário responder. Era uma vida reclusa, mas bem cheia a que Hilda Hilst levava na sua Casa do Sol (e também tinha a Casa da Lua, na praia. Dona de terras, grande dama do interland paulistano, nascida Almeida Prado por parte do pai poeta. Sabia receber comme il faut aos inúmeros cães, amigos, artistas, amores. Tudo isso dava trabalho a essa taurina com lua em Aquário, que escrevia sem parar uma literatura genial, tresloucada, comparada a de James Joyce, não menos. Caio viajava pelo mundo, essa era sua paixão. Mudava de cidade e de emprego como respirava, naquele seu ritmo budista. Voz mansa, profunda, muitos silêncios. As cartas eram um respiro, uma forma de manter a pouca sanidade mental. Escrever cartas era como manter um diário; havia dias que escrevia cinco ou seis cartas para amigos, amores e familiares. Hilda foi uma destinatária privilegiada, assim como eu. Caio escrevia para si mesmo, como desabafa na epígrafe do “Numa hora assim escura”, para organizar a cabeça, fazer planos, registrar um memorial. Escrevendo, eu falo pra caralho, era seu mote. Quanto à reciprocidade do amor, dura falácia. Como se sabe, não é a quantidade e nem o tamanho que revela o teor do afeto. Eles foram platônicos perfeitos: viviam conectados em outro plano, praticavam telepatia entre outras formas de comunicação. Apesar das poucas cartas que Hilda enviou a ele, a afeição entre ambos sempre foi correspondida e eterna enquanto durou. Foram amigos e irmãos até o fim. Quando Caio morria em Porto Alegre, Hilda era uma das poucas que telefonavam todos os dias. Ela chorava e ele a consolava. Amor de amizade, diziam.
DA – Embora tenha as cartas como ponto de partida, o livro apresenta uma estrutura coesa, cuja narrativa remonta passagens tanto de Caio quanto de Hilda que antecedem e sucedem as situações abordadas nas cartas. Obviamente que, pelo seu livro anterior e pelo próprio convívio com o Caio, você já detinha desse material do autor. Porém como foi reconstruir os momentos de Hilda? Já havia uma aproximação com a vida e com a obra da autora, ou ocorreu um processo inverso, no qual as cartas a levaram a pesquisar sobre o passado dela, inclusive com o recurso de entrevistas?
PAULA DIP – Conceber um livro de cartas é revelar a passagem do tempo, o movimento social, o pensamento coletivo, o processo histórico. Sem falar nas emoções etéreas e aéreas que só as cartas contêm. É fascinante ver as pessoas dessa forma, tudo se encaixa. Antes de jornalista e escritora, sou formada em História na PUCSP, em 1970, e desde então procurei ver as coisas a partir do processo dialético. Cheguei a considerar seriamente a possibilidade de ser professora, ter uma carreira acadêmica, mas naquele tempo as pessoas viviam sendo presas na faculdade: ter lido Marx era uma condenação. Foi uma orientadora, a Zilda Zerbini, que me sugeriu ir trabalhar nos fascículos de História da Abril. Caio havia trabalhado, antes de mim, deixado pistas invisíveis. Pois foi assim que descobri a escrita. Estudiosa em Português, criava histórias que lia para a classe, trocava poemas com colegas de redação, escrevi poemas desde menina. Mas foi ali na Abril Cultural, que senti que eu poderia ser uma escritora. Com esses olhos, fui atrás da mulher de quem Caio sempre me falou muito: poetisa vivendo na Casa do Sol e amiga do meu amigo, Hilda era personagem frequente de nossos papos. E, sim, parti de um extenso memorial da nossa geração, que virou meu primeiro livro. Mas os livros atraem gente que gosta deles e chegaram outras pessoas que conviveram com a dupla, entrevistei dezenas delas. Reorganizei a obra de ambos de um novo ponto de vista: a amizade que os uniu, confidências, afinidades, as brigas, as gargalhadas. Desenhando uma linha do tempo com suas cartas, contos, gritos e sussurros. Foi uma viagem deliciosa.
DA – As cartas, além de serem registros de uma relação bem particular, estão carregadas de retratos de suas épocas, por meio de olhares deliberados, de comentários incidentais. Você consegue identificar um valor histórico na mesma proporção que literário nessas missivas?
PAULA DIP – Com certeza. É isso que me fascina nesse tipo de livro: as cartas são fontes primárias da experiência existencial de uma determinada geração. Elas revelam o cotidiano, o desenrolar da cena histórica em que viveram o autor e seus contemporâneos, cada um fazendo sua arte, levando sua vida. É um flashback de um determinado momento, como o depoimento de uma testemunha ocular revelando tudo. Nesse sentido as cartas que publico são documentos sociais e políticos de um período muito conturbado da vida brasileira. Entre 70 e 90 (data da primeira e da última carta desse pacote) vivíamos às voltas com uma ditadura cruel, e embora os dois escritores não fossem exatamente militantes, foram vítimas da Censura e da repressão. Hilda hospedou e preservou vários amigos procurados pelo DOPS, e Caio foi um deles. Além de registrarem uma relação bem particular, as cartas são lindas e seu valor literário é inestimável. O professor de literatura gaúcho Luis Augusto Fischer acredita que, se olhadas com o devido distanciamento, essas cartas têm a mesma importância literária dos contos, crônicas e romances dele. Concordo inteiramente.
DA – Algo que fica explícito nas cartas é a voltagem emocional de Caio, sobretudo suas variações. É curioso quando ele aconselha Hilda a não se importar com as críticas, sendo que ele próprio fica extremamente melancólico diante de uma leitura negativa de seu livro. Dentro de uma mesma carta, por exemplo, há notícias de alegria e trechos em que se mostra introspectivo, desencantado quanto à vida que levava. Quem era esse Caio, afinal? De alguma forma, ele escrevia essas cartas também endereçadas a ele?
PAULA DIP – Esse Caio era muitos, como aliás, todos nós somos, mas ele não fazia disso segredo. Escrevia suas cartas como se fossem páginas de um diário, registros em alta voltagem de seus altos e baixos cotidianos. Ele usava a literatura e a correspondência como uma forma de estar em contato com as pessoas que ele amava, fazer uma espécie de auto reflexão. Pensar a vida. Era uma pessoa muito transparente; quando estava triste, revelava sem pudor o motivo de seu desespero, às vezes acordava achando que a vida não valia a pena e me ligava de madrugada, dizendo que queria morrer. Nos textos, despedia-se da vida num parágrafo e, no outro, já estava rindo da própria tristeza. Ele vivia numa gangorra emocional, porque tinha coragem de se jogar nos abismos da dor nu e sem medo, como diziam alguns que testemunharam esses mergulhos. Isso fica muito claro em sua obra; ele se jogava lá no fundo das emoções, das mais sutis às mais despudoradas. É disso que vive um escritor. E quando ele estava feliz, não havia ninguém mais feliz que ele. Era engraçadíssimo, queria sair, dançar, fazer festas, jantares, adorava rir, dançar e namorar muito. Hoje ele seria considerado bipolar. Caio sempre fez análise, frequentou um psicanalista até o final da vida.
DA – Outro aspecto, dentro desse mesmo contexto, é o fato de que, nas cartas mais antigas de Caio, as palavras “suicídio” e “morte” aparecem com alguma frequência, diferente das mais breves, datadas nos anos 90, quando já estava infectado com o vírus HIV, que iria matá-lo. Você acredita que, diante da finitude, ele se deu conta de que a literatura era o que sempre o manteve vivo e, portanto, tornou-se mais determinado a escrever?
PAULA DIP – Sem dúvida foi isso mesmo que aconteceu. Caio era um insatisfeito, sempre reclamou da vida e ameaçou acabar com ela muitas vezes, até descobrir, em 1994, que era portador do vírus da AIDS. Quando o exame deu positivo, e isso naquele tempo significava uma sentença de morte, em vez de se matar, ele decidiu viver intensamente e “positivar” sua relação com o mundo. Voltou para a casa da família, no bairro do Menino Deus, em Porto Alegre, e nunca mais reclamou de nada. Começou a cuidar do jardim com o pai, velhinho, com quem havia se desentendido na juventude. Aproveitou todos os minutos de sua sobrevida para finalizar a obra, revirou gavetas, reeditou textos, publicou um livro póstumo, o “Ovelhas negras”. Antes mesmo de morrer, fez projetos, planejou, viajou, despediu-se da vida de forma gloriosa. É claro que teve momentos difíceis que dividiu com Deus e com poucos e íntimos amigos, e todos se encantaram com sua aceitação Zen e sua decisão de sair da vida de uma forma suave. “Que seja doce”, dizia.
DA – Um trecho marcante é de uma entrevista da Hilda na qual ela denuncia que o então editor de Caio havia dado um bom adiantamento para o livro de uma atriz, enquanto o autor, já com reconhecidos livros publicados, lavava pratos em Londres para sobreviver. Penso que isso, de certa maneira, é um dos fatores que contribuíram para sua obra ter ganhado o devido respeito somente anos depois de sua morte. Na condição de amiga – e também de fã -, como lida com essa questão? É inevitável conter um resquício de mágoa ou parte do princípio de que melhor o reconhecimento tardio que reconhecimento algum?
PAULA DIP – Não acho que a falta de reconhecimento, por parte do público ou do editor, seja um fator para que a obra dele tenha ganhado o devido respeito somente anos após sua morte. Caio sempre viveu adiante do seu tempo, é mais compreendido hoje do que foi então. Ele estudava seu próprio mapa astral e dizia, com sabedoria pontuada de ironia, que só seria famoso depois de morto. Até nesse sentido ele e Hilda eram parecidos, pois ela também não teve uma fortuna crítica enquanto vivia e nunca vendeu muitos livros. Ambos nunca se deram bem com alguns de seus editores, que chamavam de “cornos”, e ela tomou as dores do amigo quando o editor da Cia das Letras preferiu publicar um livro de Bruna Lombardi (que Caio adorava, diga-se de passagem), sem se lembrar de que o escritor pudesse passar por dificuldades financeiras em Londres. Nesse caso específico, que ocorreu nos anos 90, ele lavava pratos para sobreviver, no restaurante L’ Ecluse, em Camden Town, enquanto, na livraria ao lado, seus livros, com a tradução para o inglês de “Os dragões não conhecem o paraíso”, vendiam bem e enfeitavam a vitrine. Ironias do destino. Na verdade, Caio havia recebido um adiantamento de autor em parcelas mensais para escrever seu novo livro, que seria “Onde andará Dulce Veiga?”, mas o adiantamento acabou e ele ainda não terminara o livro. Quando ficou pronto, o editor cumpriu o prometido e o livro foi publicado. Mas nada disso o impediu de viajar pela Europa inúmeras vezes para lançar traduções de seus livros em alemão, italiano, francês e holandês, entre 1990 e 1996, quando morreu, justamente no momento em que sua obra começava a ficar mais conhecida fora daqui.
DA – Você coloca que os contos de Caio eram mobilizados por uma energia cuja fonte estava além da literatura; vinha de um pendor crítico social, de uma necessidade indispensável de usar a máquina de escrever como arma contra toda forma de poder, de ser um antídoto contra qualquer manifestação de tirania. Diante do quadro da literatura brasileira construído nos dias de hoje, acredita que falta um pouco dessa energia aos novos autores?
PAULA DIP – A palavra é uma arma contra a tirania. Foi assim antes, durante e depois dos tempos da ditadura, e continua sendo assim. O texto é um instrumento de expressão e de luta, e escritores, pensadores, filósofos, poetas, compositores sempre enfrentam censura, incompreensão, muitos são perseguidos, torturados e às vezes mortos. Mas a obra deles permanece viva. É bom lembrar que naquele tempo não havia redes sociais, celulares, essas tecnologias que banalizam e embaçam as relações, roubam nosso tempo, mas por outro lado aceleram e ampliam as possibilidades de comunicação. Dizer que a literatura das máquinas de escrever era mais pura, mais autêntica e mais inspirada que a de hoje soa como nostalgia, acho que a boa literatura não tem data, a força da palavra sobrepuja tudo. O século 21 é um momento histórico em que vivemos mais, morremos mais tarde, a longevidade nos dá o tempo e os instrumentos para fazer ao vivo, em cores e em tempo real uma autocrítica de nossa passagem pelo planeta. Quer coisa mais excitante? Só virar jovem de novo. Os temas estão todos aí. Não falta assunto para que os escritores criem bons livros e, aos bons autores, não falta energia. Por incrível que pareça, acredito que, quanto mais a situação piora, mais material os escritores terão para contar nossa história. Escrever é inevitável.
DA – Ao reconstituir a trajetória de Hilda, você ressalta a dificuldade que era para uma mulher, nos anos 60, tomar a carreira de escritora. Nos últimos anos, um debate de mesmo centro tem chamado atenção para a presença de mais autoras no mercado. Acredita que, meio século depois, pouco mudou em relação às mulheres na literatura?
PAULA DIP – As mulheres foram e continuam sendo menos valorizadas que os homens em todas as áreas, vivemos num mundo machista. Não faz muito tempo as mulheres não votavam, sequer frequentavam as universidades. É como se as mulheres existissem apenas para procriar e cuidar da casa e dos filhos. Hilda, que se casou apenas para atender a um pedido da mãe, vivia delatando o “engodo” do casamento; sempre lutou contra essa situação de inferioridade da mulher. Ela foi uma guerrilheira à sua maneira, viveu muito adiante de seu tempo, assim como Caio também o fez. Não quero entrar nesse assunto, que considero vital e altamente inflamável, digno de outra entrevista tão ou mais longa que essa. A literatura dita “feminina”, independente e bem antes do viés de gênero, sempre foi de resistência. Escrever é uma luta árdua, diária, e como disse Virginia Woolf, em 1928: “É preciso ter um teto só seu para poder se dedicar à escrita”. Continua igual, ou pior.
DA – No prólogo do seu livro anterior, “Para sempre teu, Caio F.”, você relata que um jovem atendente de videolocadora reconheceu o seu nome como o da amiga de Caio, em razão de um conto dedicado a você. É muito interessante notar essa redescoberta da obra dele por uma geração que, na ocasião da sua morte, sequer existia. A que atribui essa conexão, num mundo comandado por outros valores, por outras realidades além daquela em que morangos mofam?
PAULA DIP – Como não amar e viver a redescobrir Shakespeare, Dante, Clarice, Pessoa, Machado? Os bons textos atravessam gerações. Tenho certeza de que, quando estudarem a literatura do final do século 20, o escritor Caio Fernando Abreu será considerado um clássico. Morangos continuam mofando e os dragões ainda não conhecem o paraíso. Para mim é muito natural que as novas gerações se encantem com o trabalho dele. Ele começou a escrever muito cedo, sua linguagem, embora singela e irretocável, revela uma originalidade enorme e um perene apelo jovem.
DA – Se Caio seguisse escrevendo hoje, quais temas, supõe, que seriam os de interesse dele?
PAULA DIP – Caio estava sempre muito atento a tudo. Era um escritor político, no sentido largo da palavra, via a vida como um todo, nunca deixou de criticar os problemas da nossa geração; lutou à sua maneira contra a ditadura e todos os seus males. O mais incrível é que parece que o Brasil não mudou. Costumo dizer que ele era meio vidente por ter sido um dos primeiros a falar de ecologia, dos venenos do capitalismo, das questões de gênero, temas que hoje são muito presentes em nosso cotidiano. Vários assuntos que ele abordava ainda estão aí, a serem resolvidos. Crise econômica, corrupção, descuido com a vida no planeta, poluição, desmatamento, o eterno retorno, o desencanto da juventude diante de tudo isso. Ele tinha um olhar agudo e muito focado em relação a esses problemas e acredito que continuasse assim. E como seu trabalho era autobiográfico, de sorte que ele era o herói de suas próprias fábulas, certamente estaria falando da velhice, da maturidade, ainda buscando o amor e sofrendo com a falta dele, em tempos conturbados e escuros como os que vivemos. Daí o título do meu livro. “Numa hora assim escura” é uma frase que encontrei numa carta dele à Hilda escrita nos anos 70, ainda tão atual. É isso que faz dele um clássico: seus textos se referem a questões humanas que não têm prazo de validade, são eternas.
DA – Ao fim, você conclui que Hilda estava sempre à procura de Deus, e Caio escrevendo sobre amor. O que lhe conduziu a esse pensamento?
PAULA DIP – Essa busca por Deus e pelo amor é universal, e está bem evidente na obra deles. E tanto em relação ao amor quanto a Deus, Caio e Hilda tinham sentimentos semelhantes: acreditavam duvidando. Dizem isso em muitas entrevistas. Caio adorava muitos deuses e pedia a eles: quero porque quero me casar. Perseguiu até o fim um amor realizado, mas zombava do próprio desejo garantindo que, se o tivesse encontrado, teria parado de escrever. No caso de Hilda, creio que desenvolveu como poucos uma linguagem extremamente coloquial com Deus e, nesse sentido, eu a comparo a Saramago, especialmente no conto que já citei, “Lázaro”, do” Fluxo-Floema”. Adoro esses versos dela, em “Mula de Deus”, do livro “Estar sendo, Ter sido”, cujo início é assim:
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.
Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada[…]
DA – Talvez a pergunta mais difícil tenha ficado por último: qual o seu texto preferido de Caio Fernando Abreu?
PAULA DIP – Quando a gente convive de perto com um artista e desenvolve certa intimidade com a obra dele, fica difícil pinçar favoritos. É claro que, pelo fato de ter visto nascer os contos de “Morangos mofados”, eu tenho um xodó por esse livro (que, aliás, é sua obra mais conhecida), e um carinho especial pelo conto “Pela passagem de uma grande dor”, que ele me dedicou. Amém. Trata-se do relato poético de uma conversa telefônica entre dois amigos, que realmente aconteceu. Caio fazia uma literatura de autoficção, contou nossa história a partir de fatos e pessoas reais, posso nos ver e a muitos de nossos amigos naquelas histórias. Foi um cronista fiel da nossa geração de baby boomers, hippies, yuppies, punks, revolucionários, loucos, criativos; mudamos o mundo e estamos envelhecendo. Ele construiu uma obra coesa e muito representativa daqueles anos loucos que temos o privilégio de rever. Somos a primeira geração realmente vintage. Aos poucos, a partir do nosso encontro, ele foi me presenteando com seus primeiros livros, dos anos 60 e 70, como o “Inventário do irremediável”, “Pedras de Calcutá”, “O ovo apunhalado”. Caio era um escritor generoso, dividia com os amigos suas dúvidas sobre o trabalho, nos mostrava rascunhos, alguns textos nos entregava em mãos, tenho até hoje originais que ele me deu e já reli milhares de vezes. Li tudo o que Caio escreveu, desde as cartas e as crônicas, passando pelos contos, os textos teatrais e os dois romances, “Limite Branco” e “Onde andará Dulce Veiga?”; o primeiro, seu romance de formação dos anos 70, e o último, dos anos 90, sua despedida do gênero. Adoro “Pequenas epifanias”, “Cartas para além dos muros”, “Os dragões não conhecem o paraíso”. Quanto à dramaturgia, meu texto favorito é “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”, peça escrita em Londres, em 1973.
Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.