Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

 

Resiliência é uma palavra que, há pouco tempo, entrou em uso comum no vocabulário popular. Segundo o dicionário Houaiss, o sentido figurado do termo ilustra “a capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças”. Ou seja, toda pessoa que, apesar das adversidades, vai adiante, encarando a vida de frente.

No entanto, outro conceito, surgido faz tão pouco tempo e que sequer consta nos dicionários, tem a ideia de representar com mais intensidade a resistência humana: a antifragilidade. Não que seja o oposto da resiliência, mas um significado diferente. Uma pessoa antifrágil é aquela que, diante das adversidades, torna-se mais forte. Não importa de quão alto ela caia ou quão profundo possa ser ferida, ela sempre vai crescer na relação com seus desafios e problemas; sempre vai reafirmar seu poder.

É difícil identificar qual desses conceitos melhor se adequa a Lígia Vitalina, protagonista de “Por cima do mar”, de Deborah Dornellas. Em sua estreia no romance, a jornalista, escritora e artista plástica carioca/brasiliense, há sete anos radicada em São Paulo, dá voz a uma mulher negra, filha de um operário e de uma dona de casa, que passou sua infância e adolescência na periferia de Brasília enfrentando dificuldades sociais, discriminação e um estupro que preferiu esconder, de modo a alcançar seus objetivos.

A personagem Lígia estudou com o ensino disponível, entrou para a faculdade e formou-se em História, seguindo carreira acadêmica centrada na pesquisa entre a cultura brasileira e a africana. Numa viagem ao Rio, conhece um professor angolano, com quem se casa, tem filhos e passa a viver na cidade de Benguela.

Certos componentes do enredo refletem a própria vida da autora, também casada com um angolano e com uma carreira acadêmica voltada para o estudo da cultura africana. São fusões entre realidade e ficção que tornam a personagem tão bem delineada em seu aspecto humano, que, na dúvida se sua característica mais marcante é resiliência ou antifragilidade, não foge à certeza de que se trata de uma das protagonistas mais fortes e inspiradoras da literatura contemporânea brasileira.

Prova disso é que o romance foi agraciado, no fim do ano passado, com o prêmio Casa de las Américas, distinção oferecida pela fundação cubana que tem, em seu catálogo, vencedores do porte de Maria Valéria Rezende, Ana Maria Gonçalves, Nélida Piñon e Luiz Ruffato. No comunicado de apresentação do prêmio, os jurados defenderam ser um livro relevante e envolvente, tratando com originalidade e profundidade a vida difícil da protagonista e das mulheres negras que vieram antes dela. E arrematam chamando atenção para o cuidado com a pesquisa histórica e a performance literária de alta qualidade.

Na entrevista a seguir, Deborah Dornellas fala sobre o longo processo de composição do livro, a maneira como recebeu o prêmio e sua visão do meio literário. Além disso, valendo-se das circunstâncias que envolvem sua personagem, toca em temas como racismo, a participação das mulheres na sociedade e a presença de autores negros na literatura contemporânea brasileira, pensando na literatura como um instrumento também capaz de fazer o leitor voltar os olhos para fora do livro.  “Não sei se os artistas têm o dever de se manifestar sobre questões que afligem a sociedade por meio de sua arte, mas eu invisto nisso. Acho sim que a literatura tem o poder de conscientizar o leitor de maneira a que isso reflita em suas ações e em sua visão de mundo. Aconteceu e acontece comigo muitas vezes, tanto com a leitura quanto com a escritura. É incrível o que um único livro pode fazer na vida de uma pessoa!”, reflete.

 

Deborah Dornellas / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Seu romance tem sua força motriz concentrada no aspecto humano da sua protagonista, uma mulher negra, de origem pobre, que, em meio a uma série de fatos ruins e de circunstâncias adversas, supera o passado e, por amor, cruza o Atlântico. Como foi organizar um livro que se desenvolve em várias linhas narrativas, indo e voltando no tempo, para que, a certa altura, o leitor ficasse com a impressão de que toda a história aconteceu de verdade, de que a narração progredisse de forma intuitiva?

DEBORAH DORNELLAS – Foi uma aventura. Entre o primeiro parágrafo e o ponto final, mais de cinco anos se passaram. O parto foi longo.  E o livro como uma narrativa fragmentada, com cenas avulsas. Tentei algumas vezes domar o texto, ter mais controle sobre o processo de escrita, mas não consegui. A narrativa fragmentada, indo e vindo na linha do tempo, se impôs. Depois de relutar um pouco, no início, acabei me rendendo. Percebi que esse livro só se escreveria assim. Muitas cenas, inclusive, foram escritas em madrugadas insones, no bloco de notas do celular, no tablet etc. Eu escrevia a cena, salvava, enviava para o meu e-mail e no dia seguinte revisitava, editava. Foi assim até quase o fim do processo. Felizmente, descobri, depois de algum tempo, que isso poderia trabalhar a favor da protagonista-narradora e da história que ela estava contando. Somente em 2017 comecei a montar uma estrutura. Confeccionei uma espécie de escaleta gigante, de cartolina branca, que preguei na parede do quarto. Enumerava as cenas e as colocava numa determinada ordem, para conseguir visualizar melhor. Cada cena tinha uma breve descrição, escrita a lápis, para que eu pudesse apagar e trocar de posição, quando necessário. Mais ou menos como fazem os roteiristas. Aliás, muitas vezes me foi útil o pouco conhecimento de roteiro que tenho. Parecia que eu estava escrevendo um filme de longa metragem. “Por cima do mar” foi minha primeira experiência em prosa longa, e eu não tinha nenhum treino nisso. Na verdade, tive que montar um quebra-cabeça de muitas peças para pôr o livro de pé. Essa primeira montagem não sobreviveu, mas foi fundamental para eu ter um norte. Dali em diante, comecei a trabalhar na costura das cenas, mantendo sempre essa característica da fragmentação, com capítulos curtos, mas já com uma noção de sequência. Em alguns trechos, optei por emendar capítulos que tinham continuidade, porque nesses casos a fragmentação prejudicaria o entendimento. Apesar de ter lido e estudado material sobre técnicas narrativas e de ter tido interlocução desde o início da escrita (o romance nasceu em 2013, como trabalho de conclusão de curso, para a pós-graduação em Formação de Escritores do ISE Vera Cruz, e por isso foi lido e comentado durante as oficinas avançadas), acho que o processo de produção do texto foi um bocado intuitivo também.

 

DA – Há situações e tomadas de caminhos na vida da protagonista de seu livro que muito se aproximam daquelas que configuraram a sua própria vida. Isso foi algo espontâneo, quase como um flerte involuntário com a autoficção, ou, desde o começo, você teve esse intuito de visitar trechos da sua realidade através de recortes ficcionais?

DEBORAH DORNELLAS – Tive sim o intuito de visitar trechos da realidade de Brasília, do Brasil e de Angola por meio de recortes ficcionais. E também emprestei à protagonista alguns elementos de vivências minhas, de situações que conheci de perto. Acho que muitos ficcionistas fazem isso. Mas não sinto que tenha exatamente flertado com autoficção.  Não é uma vertente que não me atrai como escritora, embora como leitora eu aprecie algumas obras que vão por esse caminho. Quanto a mim e Lígia Vitalina, a protagonista-narradora, nossas biografias apenas se tocam em alguns aspectos: somos mulheres, ambas criadas no DF, pertencemos a gerações próximas (ela é de 1967, eu sou de 1959), estudamos na UnB, gostamos de música e escrevemos poesia. Mas me parece que as semelhanças são apenas essas. Não diria que nossos caminhos de vida se aproximam por isso. Na verdade, ao longo da produção do livro, fui criando situações para Lígia Vitalina de maneira a tentar aproximá-la mais de mim, já que somos bem diferentes. Lígia é negra, nascida e criada na periferia do Distrito Federal, numa família pobre. Eu sou branca, de classe média alta, nascida no Rio e criada do Plano Piloto de Brasília. Existe um apartheid geográfico e social entre essas duas experiências, esses dois pontos de vista. Lígia olha para Brasília, para o Plano Piloto, de fora para dentro. Sua trajetória, suas desventuras, as violências que sofre, sua reconstrução emocional, sua travessia de volta à geografia ancestral, seu lugar de fala, tudo é muito diferente da minha experiência. Nós não falamos do mesmo lugar. A meu ver, os cenários e episódios da história coletiva de Brasília são mais relevantes para a história da personagem do que os elementos da minha história que emprestei a ela. Mas, desde que me joguei nessa aventura, eu quis fazer justamente o exercício de me colocar no lugar da outra, de olhar a partir do ponto de vista de uma mulher com uma biografia muito distinta da minha. Para isso, era fundamental que a própria personagem contasse sua história, que tivesse voz. Por isso escolhi a primeira pessoa para narrar. Foi uma escolha arriscada. Imaginei que suscitaria várias questões, como esta do provável namoro com a autoficção, e outras, relacionadas justamente ao lugar de fala. Procurei tomar muito cuidado com isso. Mas me pareceu que a primeira pessoa da narrativa era a única possível, para o livro que eu queria escrever. Desde o começo, Lígia queria contar, ela mesma, essa história. Esse romance só existe porque ela não desistiu dele (e de mim) todo esse tempo. “Por cima do mar” nasceu com Lígia Vitalina da Conceição Brasil e por causa dela, e assim se sustentou até o fim. Impressionante a força dessa personagem. Apesar de ela ser uma personagem completamente ficcional, penso em Lígia como uma pessoa de carne, osso, vísceras e vontade. E, mesmo depois de tantos meses da publicação do livro, às vezes tenho a sensação de que vou encontrá-la numa esquina. Ficamos amigas.

 

DA – Os personagens de seu livro vivenciam episódios marcantes da história do Brasil, com base no Distrito Federal, a exemplo do incidente do Quarentão (antigo clube da música negra, invadido a tiros pela polícia, nos anos 80) e do enterro do presidente Juscelino Kubitschek, em 1976. Qual o cuidado que você teve ao trazer esses registros históricos para seu livro, contextualizando com a formação dos personagens, sem soar aleatório ou didático? Há alguma regra para se manipular a História?

DEBORAH DORNELLAS – Não sei se há regras para se manipular a História. Acho que precisamos ter muito cuidado com isso. Fiz o possível para respeitar os episódios históricos que trouxe para o livro. Até porque a protagonista-narradora é historiadora e professora de História. No âmbito coletivo, da História do Brasil, de Brasília e de Angola, procurei mesmo reproduzir os fatos conforme os encontrava nas pesquisas, sempre feitas e checadas em mais de uma fonte. Fiquei meio obsessiva com datas, por exemplo. Mas também me senti bem livre para ficcionalizar elementos que servissem à narrativa, no âmbito da micro-história, das histórias do cotidiano, da experiência dos personagens que criei. Colocava o personagem na cena de maneira a que a situação interferisse na ação dele ou dela, e não o contrário. Em alguns trechos, criei cenas completamente ficcionais, mas em cenários e eventos reais, com personagens reais, como a Cássia Eller, por exemplo, que interage com alguns personagens (Lígia, Virgínia, Moscão), mas não ficcionalizei nada da história pública da Cássia. A mesma coisa com o enterro de JK, o baile black no Quarentão, o episódio do “massacre da GEB” e algumas passagens da História de Angola, como a guerra do Huambo. A dimensão histórica fez parte da proposta do livro desde o início, lá atrás, quando eu tinha apenas o conto “Vitalina”, germe do romance. Desde a apresentação do projeto, já anexei os resultados de algumas pesquisas, tanto da história de Brasília quanto da de Angola. Pessoas que leram partes do texto ao longo dos primeiros dois anos, inclusive professores da pós e, posteriormente, membros da banca examinadora, sugeriram que a história da personagem caminhasse, por pouco que fosse, junto com a história de Brasília. E que eu também falasse de Angola e incluísse episódios de sua história recente. Acolhi de cara a sugestão. Gosto muito de História e queria mesmo mostrar Brasília, minha cidade, e Angola, um país tão importante para o Brasil e tão pouco conhecido aqui, infelizmente. Para isso, fiz bastante pesquisa em livros, websites, textos, conversei com amigos brasilienses e angolanos etc. Durante todo o processo de escrita e reescrita, tomei cuidado para não passar dados históricos falsos ou imprecisos. Chequei datas, lugares, nomes, vocabulário inúmeras vezes. Em 2016, viajei para Angola, visitei Luanda e Benguela. Essa viagem foi fundamental para o livro. Mais para o final de 2017, algumas pessoas em Angola e no Brasil leram a primeira versão. Essas leituras foram muito importantes e úteis para mim. A partir das devolutivas desses leitores escolhidos, corrigi muita coisa, inclusive informações históricas e geográficas. E também excluí trechos, por serem didáticos demais, explicativos, ou muito contaminados pela linguagem jornalística – sou repórter de formação, e alguns cacoetes profissionais podem às vezes contaminar a escrita ficcional.

 

DA – Dois temas surgem com muito impacto na trajetória da sua protagonista, o racismo e a violência contra a mulher. O primeiro, em forma de preconceito e segregação; e o segundo, por meio de uma cena forte de estupro coletivo. Qual a relevância concreta da literatura como canal para se discutir assuntos como esses? Você acredita que a ficção tem o poder de conscientizar o leitor e fazer com que, de alguma maneira, isso se reflita no modo de enxergar a sociedade? E, dentro da temática do racismo, qual o seu ponto de vista em relação às polêmicas recentes envolvendo alguns dos livros de Monteiro Lobato?

DEBORAH DORNELLAS – A literatura, assim como a arte em geral, é sim um canal relevante para discutirmos muitas questões da nossa sociedade. Faço uso desses canais na minha criação. Não acho que temos sempre que produzir “arte engajada”, para usar um conceito antigo e muito questionado. Isso poderia ser uma camisa-de-força para a expressão artística, o que não é bom. Eu pessoalmente gosto de usar minhas possibilidades de expressão para tratar de assuntos que me mobilizam, intrigam, incomodam, sejam eles coletivos, da sociedade ou individuais. Quero ter o direito de fazer isso livremente. Ainda mais em tempos tão sombrios. Não sei se os artistas têm o dever de se manifestar sobre questões que afligem a sociedade por meio de sua arte, mas eu invisto nisso. Acho sim que a literatura (prosa de ficção, poesia) tem o poder de conscientizar o leitor de maneira a que isso reflita em suas ações e em sua visão de mundo. Aconteceu e acontece comigo muitas vezes, tanto com a leitura quanto com a escritura. É incrível o que um único livro pode fazer na vida de uma pessoa! Conheço muitos exemplos. Quanto ao Monteiro Lobato, acho que é fundamental que, ao ler sua obra, o leitor seja informado sobre as posições ideológicas racistas e eugenistas do autor. Até porque acho que ele nunca escondeu suas ideias a esse respeito. Há elementos em muitos de seus livros, inclusive nos mais populares, lidos por crianças há gerações. É preciso que se dê nome às coisas. Nunca fui leitora de Lobato. Talvez não tenha sido apresentada a ela na infância como os brasileiros escolarizados da minha geração foram. Conheço personagens e trechos de seus livros, claro, mas muito por causa de programas de TV. Se tivesse que dar aulas sobre a obra de Lobato hoje, por exemplo, teria que ler tudo, e certamente leria com filtro. O viés racista em sua criação prejudicaria minha fruição.

 

DA – Outro aspecto fundamental do romance é uma resistência a fazer da protagonista, sufocada pelo sistema, sufocada por seus próprios dilemas, vítima da sociedade. Muito pelo contrário: há um fator de resiliência e de vontade de vencer muito grande na maneira de ela encarar a vida. O quão importante para a construção da personagem foi idealizá-la dessa maneira? E como essa imagem pode se refletir na representação da mulher negra na sociedade de hoje?

DEBORAH DORNELLAS – Nos primeiros tempos de escrita do texto, Viltalina (que ainda não tinha o nome Lígia acrescentado ao seu), era uma mulher melancólica, quase depressiva, muito ferida pela vida. E carregava uma herança de pai e mãe que fizeram dela uma pessoa tímida, contida. Se ela tivesse permanecido assim, teria se tornado uma mártir, uma vítima da sociedade, uma personagem pálida, e eu não queria isso de jeito nenhum. Seria muito pouco para essa personagem. As feridas de Lígia Vitalina a constituem, mas não a resumem. Além disso, seria um desserviço para a luta das mulheres, especialmente das mulheres negras. Com a evolução da escrita do romance, a personagem cresceu, amadureceu, ganhou força e autoestima elevada, até se tornar uma mulher aguerrida. Essa transformação fica evidente ao longo da vida de Lígia. De 2015 em diante, comecei a prestar mais atenção à produção intelectual das negras brasileiras e a seguir várias pensadoras negras, ler seus posts nas redes sociais, conhecer melhor seus pleitos, entender sua luta e de que lugar elas falam. Também procurei ler mais livros de escritoras negras. Essas leituras e essa atenção, mais o material que eu já tinha pesquisado e escrito, trouxeram a Lígia muitas características que ela não tinha antes, e penso que isso enriqueceu muito a personagem, tornou-a mais complexa. E verossímil. Esse crescimento e aprimoramento da personagem foram muito importantes para Lígia Vitalina que resultou, para a heroína brasileira que me desafiei a construir desde que tive a ideia de transformar um conto com problemas de construção numa prosa longa mais trabalhada. O cuidado com a representação da mulher negra na sociedade de hoje foi sempre meu norte na produção desse livro. Principalmente porque sou uma escritora branca que escreveu um livro que conta a história de uma personagem negra. Meu objetivo é juntar forças. Como disse a Ana Maria Gonçalves num programa de entrevistas em 2017, a ideia é “falar junto” e não “falar por”.

 

DA – A certa altura, a sua protagonista se apaixona, casa e vai morar em Angola, terra natal do seu marido. Você também é casada com um angolano e passou um tempo no continente africano. Nesse caso, o quanto de sua experiência pessoal serviu de matéria para o livro? E, desse conhecimento empírico, consegue traçar paralelos e diferenças entre a cultura angolana e a brasileira, sobretudo no que corresponde à literatura?

DEBORAH DORNELLAS – Lígia se casou muito antes de mim. Na verdade, Vitalina se casou quando a história ainda era um conto, antes de 2013. Quando iniciei a escrita do romance, e logo nos dois primeiros anos, mantive o mote e muitos dos elementos do conto original. Zé Augusto está lá desde o começo. Ele, sua biografia, parte de sua família. Uma das primeiras sequências que escrevi foi o encontro deles no Rio, por exemplo. Nesse momento, eu ainda não conhecia meu marido. Na verdade, foi o trabalho com o livro que me levou a ele, e não o contrário. Em 2013 e 2014, comecei a pedir amizade a vários angolanos e angolanas pelas redes sociais, justamente porque precisava conhecer melhor os costumes de Angola, expressões das línguas nacionais, indicação de fontes de pesquisa. Foi nesse contexto que conheci o Carlos, meu marido. A amizade virou namoro virtual no finalzinho de 2015. Em março de 2016, ele veio viver comigo no Brasil. Nunca nos tínhamos visto pessoalmente. O romance tinha então mais de 100 páginas escritas já. Carlos só conheceu a história de Vitalina aqui, com a leitura do material que eu havia apresentado à banca, no começo de 2015. Até então, eu ainda não tinha ido a Angola. Só pude viajar para lá em novembro de 2016, porque só então tive condições financeiras. E também quem me hospedasse em Luanda e Benguela e me enviasse a carta-convite, que o governo exige para expedir o visto. Quem fez isso foi minha amiga Judith Luacute, que conheci pessoalmente aqui no Brasil em 2014, também a partir de um primeiro contato pela rede. É ela que eu homenageio com o sobrenome da família de Zé Augusto. Pude ir sozinha para Angola – Carlos ficou no Brasil – muito por causa da generosidade da Judith e de alguns amigos do meu marido, que na época moravam em Benguela e me acolheram. Passei apenas 17 dias em Angola. Nunca vivi lá. Essa viagem foi fundamental para que eu pudesse afinar algumas cenas, enriquecer descrições, andar pelos cenários. Muitas cenas do cotidiano das ruas de Benguela, por exemplo, foram escritas depois da viagem que foi muito curta, mas inesquecível. Quero voltar logo. Angola entrou na minha vida há muitos anos, por duas portas: a primeira foi a cultura popular brasileira de matriz africana, especialmente maracatu e congado; a segunda, a literatura africana em língua portuguesa, que conheci para valer em 2004. De lá para cá, tenho lido tudo o que me cai nas mãos e sempre vou atrás de mais livros de autores angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos etc. Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Ana Paula Tavares, Gociante Patissa, Mia Couto, Paulina Chiziane, entre outros. Durante anos, entre 2004 e 2007, só lia africanos. Acho que “Por cima do mar” é tributário dessas literaturas, de alguma maneira. Há muitas semelhanças e diferenças entre as culturas brasileira e angolana. Do nosso lado do Atlântico, há sobrevivências importantes, plasmadas ao longo de toda a diáspora: aspectos da religiosidade brasileira, elementos da culinária, da música, das danças, do português brasileiro etc. Mas a Angola que está no nosso imaginário é uma Angola mítica, um lugar parado no tempo, no espaço de uma África oitocentista. Do lado de lá do oceano, a cultura brasileira tem muita influência e há um bom tempo. Nossa música é bastante conhecida, admirada e consumida lá. E nas últimas décadas, acho que dos anos 80 para cá, as telenovelas entraram em Angola com força total. Quando estive lá, assisti a alguns capítulos de duas ou três telenovelas que já tinham passado aqui. Outro fenômeno notável na Angola atual é a presença massiva das igrejas evangélicas neopentecostais, com seus templos enormes e sua rede de TV, mas isso é assunto para outra conversa. Noutras décadas, a literatura brasileira foi muito lida em Angola. Toda uma geração de angolanos leu boa parte da obra de Jorge Amado, por exemplo. Vários escritores brasileiros são conhecidos dos angolanos. Mas infelizmente essa é uma via de mão única. Poucos brasileiros sabem alguma coisa de Angola, menos ainda leem literatura angolana. Dois ou três autores angolanos são conhecidos aqui. Acho que a maioria dos brasileiros nem sabe que Angola é um país de língua oficial portuguesa. E muito pouca gente conhece ou se interessa pela história recente do país. É uma pena que o Brasil seja este país tão autocentrado, ou tão voltado para Europa e América do Norte. África e América Latina têm muito mais a ver conosco do que grande parte da sociedade brasileira imagina e deseja.

 

Deborah Dornellas / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Sua formação é de jornalista, com mestrado em História, por meio do qual você tem uma pesquisa profunda sobre a influência africana na cultura brasileira. Transportando esse conhecimento para o campo literário, como avalia a representação do negro na literatura brasileira? E, na sua opinião, ainda há pouco espaço para escritores negros?

DEBORAH DORNELLAS – Há pouco espaço para as escritoras e escritores negros na nossa literatura. Se pensarmos em termos de representatividade, menos ainda. Esses dias, li uma entrevista da Conceição Evaristo em que ela questiona justamente o fato de sua obra só ter começado a ter visibilidade muito recentemente, quando ela já passou dos 70 anos de idade. Há décadas ela trabalha, escreve, estuda, luta por espaço. Isso quer dizer muita coisa. Uma obra com essa relevância já deveria estar sendo lida há muito mais tempo. Para ilustrar a representação do negro na literatura brasileira, uso uma fala da mesma Conceição Evaristo, que ouvi numa das mesas da FLIP de 2017. Ela comentava mais particularmente sobre a representação da mulher negra na literatura brasileira. Segundo um levantamento que ela fez, as negras na nossa literatura tradicional em geral são estéreis, não são capazes de ter descendência. Isso é tão cruel quanto revelador. Acho que alguns ventos favoráveis a que isso mude estão começando a soprar, mas ainda é preciso correr muito trecho. E isso os intelectuais negros e negras têm feito muito bem. É nessa trincheira que eu quero estar.

 

DA – Seguindo esse mesmo raciocínio, uma avaliação superficial do mercado literário deixa claro que o espaço e o interesse por livros escritos por mulheres ainda compõem um percentual inferior a aquele ocupado por homens. Recentemente, a divulgação de um prêmio literário para autores inéditos também demonstrou essa disparidade. Trabalhando também como tradutora, seu olhar de dentro do mercado literário tem essa mesma percepção? Acredita que ainda exista um preconceito e uma “dificuldade” para com os livros escritos por mulheres, tanto dos leitores quanto das editoras e das comissões avaliadoras de originais?

DEBORAH DORNELLAS – Não sou tradutora literária. Talvez um dia me aventure por esses caminhos, que me atraem muito. Mas imagino que o mercado de obras traduzidas aqui no Brasil reproduza o que o mercado literário de livros nacionais faz: o reforço da hegemonia masculina. Isso se dá por várias razões que não cabe elencar aqui, mas principalmente porque o mercado literário de uma sociedade machista é fundamentalmente machista. Tenho muita implicância com o termo “escrita feminina”, por exemplo. O que seria isso? Existe “escrita masculina”? Podemos falar talvez de escrita de autoria feminina, de literatura feita por mulheres, mas só com o intuito de marcar nossa posição num mercado que resiste em abrir as portas para nós. No mais, qualquer rótulo é restritivo. O mesmo serve para escritas de negros e negras, LGBTQs, periféricos, indígenas etc. Tudo que está fora da perspectiva do homem branco, heterossexual, de classe média para cima, euro-centrado é visto como exótico. Isso, além de ser uma bobagem inominável, não é sequer inteligente, porque não leva em consideração o que o tal mercado literário, que eu nem sei bem o que é, poderia lucrar se investisse mais nessas escritas que ele próprio tende a desqualificar. Parece que isso está mudando, mas bem devagar. Em 2018, o Prêmio São Paulo de Literatura, por exemplo, só premiou mulheres em suas três categorias. Isso nos deve dizer alguma coisa sobre a literatura que estamos produzindo. Integro dois coletivos literários, o Martelinho de Ouro, composto somente por mulheres, mas sem perfil feminista, e o Mulherio das Letras, de perfil mais militante. Atesto, olhando de dentro de ambos, que nós temos uma força de produção e realização impressionante. O mercado que fique atento.

 

DA – Uma parte de seu romance se passa numa comunidade pobre, em Brasília, e é estranho como ainda hoje um autor surgido da periferia, da favela, ainda causa um fascínio pela maneira como interpreta esse ambiente e o transpõe para a ficção, valendo-se de uma linguagem própria. Foi assim, por exemplo, com o livro de contos “O sol na cabeça”, do autor carioca Geovani Martins. Pensando nas características desse tipo de literatura, como você avalia o olhar de fora para esse universo particular? Acredita que ainda exista uma barreira para o que foge da norma culta e traduz esse movimento como algo exótico?

DEBORAH DORNELLAS – É como eu disse aí acima. O olhar de fora é limitado e tende a rotular de exótico tudo que não traduz a perspectiva hegemônica. A periferia é olhada de fora por quem dita as regras no mercado. A ascensão rápida do Geovani Martins é uma exceção a essa regra. Gosto muito do trabalho dele, li “O sol na cabeça” numa noite. O texto tem muita força. Ocorre que quando as coisas começam a aparecer no centro, provavelmente já estão acontecendo há muito tempo na periferia. A periferia pulsa. E é de lá que vem o novo. E não só na literatura. Basta olhar para todos os movimentos que têm acontecido nas periferias do Brasil há décadas para constatar isso. Na área da literatura, há saraus, slams, feiras literárias – como a FELIZS em São Paulo, a Movida, no DF, e FLUP, no Rio, por onde inclusive o Geovani Martins passou e passa –, casas editoriais independentes etc. Mas os caras só enxergam isso pela sua lente. E com delay.

 

DA – Por falar em linguagem, embora com uma força de escrita descritiva, seu romance traz um teor visível de lirismo no modo como compõe certas cenas e narra a maneira com que a protagonista decifra o mundo externo e o interno. De onde vem essa verve poética, e como ela se encaixa na construção do seu livro?

DEBORAH DORNELLAS – Escrevo poesia desde muito cedo. Foi por essa porta que entrei na escrita literária. Embora seja uma leitora mais frequente de prosa, a poesia é minha forma de expressão mais orgânica. Meu primeiro livro publicado foi uma coletânea de poemas, TRIZ (In House, 2012). Desde 2012, comecei a fazer oficinas literárias. Fiz duas com o Marcelino Freire, antes de entrar na pós-graduação para escritores. Foi nesse ambiente que comecei a arriscar textos em prosa. A coisa se destravou aí, mas foi só no ano seguinte, quando entrei para o Coletivo Literário Martelinho de Ouro, que tive coragem de publicar alguns dos meus contos. Desde 2013, temos publicado coletâneas de textos todos os anos, em formato de livro ou fanzine. Quanto ao lirismo, acho que não sei escrever sem ele. Aliás, acho que não viveria sem lirismo. No romance, ele está por toda parte. A poesia esteve presente desde o início da escrita. Com uma particularidade: poesia e prosa poética funcionam como uma espécie de refrigério para a protagonista. E acho que para o leitor também, em alguns momentos. Descobri que esse é um recurso meu. Quando não dou conta de narrar, por alguma razão, recorro à poesia. Emprestei esse recurso à Lígia Vitalina, e ela aceitou. A poesia entra em momentos muito difíceis ou intensos para ela.

 

DA – “Por cima do mar” é seu primeiro romance, e ganhou, no ano passado, um dos prêmios literários mais prestigiados do mundo: o Prêmio Casa de las Américas. Eu queria saber como foi sua relação com a editoras, quando estava procurando um selo para publicação, até finalmente o original do romance ser aceito pela Patuá? E se, após a conquista do prêmio, surgiu algum tipo de interesse pelo seu trabalho por parte de outras editoras, talvez alguma daquelas consideradas grandes?

DEBORAH DORNELLAS – Não houve relação com editoras. O Martelinho já publicava com a Patuá. Conversei com o Eduardo Lacerda, dono da editora, dei uma parte do manuscrito original para ele ler e logo em seguida já combinamos a edição. Foi um processo bem rápido. Nossa relação é muito boa e fluida. Consegui fazer o livro que eu quis, no formato que escolhi. E foi o Edu quem sugeriu que eu mesma ilustrasse o romance. Isso talvez não fosse possível se eu estivesse numa editora dessas consideradas grandes. Nenhuma delas veio me procurar ainda.

 

DA – Qual o grau de transformação você acredita que um prêmio desse porte pode trazer para sua carreira de escritora?

DEBORAH DORNELLAS – Receber o Prêmio Casa de Las Américas, ainda mais com o primeiro romance, é uma grande alegria e uma imensa honra para mim. Acho que as coisas já começaram a mudar. E podem mudar mais ainda, em relação à visibilidade do livro e ao interesse que ele desperta. Qualquer prêmio relevante pode ser uma alavanca para a carreira da escritora ou do escritor. Desde que foi divulgado o resultado do prêmio, pessoas começaram a me procurar para entrevistas, resenhas foram publicadas, convites para participar de feiras literárias começaram a pipocar. Estou adorando, claro, e surfando nessa onda. Afinal todo livro é uma aposta, um sonho e envolve muito trabalho.

 

DA – Há um momento muito bonito em seu livro, no qual a protagonista percebe que suas escolhas de vida a levaram a se completar no outro. Pensando na literatura como uma escolha para entender a si mesma, de que maneira o exercício da escrita e da criação lhe completa?

DEBORAH DORNELLAS – Que bonita essa percepção. Não tinha pensado nisso, nem em relação a ela, nem em relação a mim. Escrever, poder expressar-se é muito bom, e o exercício da escrita e da criação pode sem dúvida ser um caminho para o autoconhecimento, a autopercepção, o auto-acolhimento. Os momentos mais prazerosos para mim são aqueles em que estou escrevendo, pintando, lendo, pensando sobre um próximo livro, trabalhando numa ideia. Criar, mesmo quando dói, é bom. Descubro isso todos os dias.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

 

 

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