GRACO BRAZ PEIXOTO & A PERENIDADE DA CANÇÃO POPULAR
Por Floriano Martins
O compositor e intérprete Graco Braz Peixoto (Fortaleza, 1955) tem um currículo no mínimo curioso. Possui mais de oitenta gravações de suas músicas por cantores e autores de expressão no cenário da MPB, além de gravações nos EUA e Europa por artistas brasileiros. No entanto, somente em 2000 gravou seu primeiro e único disco, Kizumba-Mass, uma produção dele próprio para o selo Atração Fonográfica. Entre os parceiros mais conhecidos e/ou cantores gravados estão: Belchior, Fagner, Ednardo, Fausto Nilo, Zeca Baleiro, Chico César, Joanna, Oswaldinho do Acordeon, Nubia Lafayette, Altemar Dutra, Cláudia Barroso, Maria Alcina e Anastácia. Um destaque acima de qualquer suspeita é a canção “Noturno” (escrita em parceria com seu irmão, Caio Sílvio), cuja gravação original, pelo Fagner, foi tema central – inclusive lhe dando título – da telenovela Coração Alado, de Janet Clair, para a TV Globo em 1980. Outro bom destaque é a parceria com Daniel Taubkin que rendeu boa parte do disco A Picture of Your Life, do próprio Daniel Taubkin, produzido por Roy Cicala para o selo Blue Jackel, Estados Unidos, 2002. O diálogo a seguir é uma palhinha da serenidade e visão de mundo desse artista apaixonado pela música e a vida.
FLORIANO MARTINS – Há um aspecto que sempre soa curioso em relação à opção estética de um criador, o que o levou a dar mais atenção a uma zona de criação. Em teu caso, a canção popular. Qual é o mapa da mina?
GRACO BRAZ PEIXOTO – Bom, talvez devesse falar antes do território para depois chegar à mina. Antes da ilha-canção, a música como oceano. Alguém já disse que todas as artes aspiram à condição da música, a música que o filósofo Plotino considerava como um caminho para se chegar a Deus, a música que prescindiria da matéria e se tornaria contemplação da harmonia divina, como queria Santo Agostinho. A música, deste ângulo, seria a via de acesso ao Absoluto. Todos nós sentimos isso em relação à música de Bach, de tantos gênios da história. É sempre mais legal falar do aspecto sensorial do que falar da música como técnica. No princípio, existe o mito da canção de Ur, na antiga Caldeia, a canção como sensação do objeto primevo, aquela que o bebê balbucia ainda no berço. Este é um mito romântico, mas no campo das artes eu acho que a metafísica é sempre mais importante, toda arte se move no campo do sensível e para além dele. E nesse aspecto, me parece que a música leva vantagem em relação às outras artes. Quero dizer que é muito mais fácil um garoto se apaixonar primeiro pela música, principalmente se levarmos em conta sua relação com a indústria do entretenimento.
Certamente a ideia de escolha deve ter surgido quando a aventura já estava em pleno curso. Deve ser algo inconsciente, voltando ao caráter atávico da coisa. Falar da música é falar da infância, no caso a nossa infância em Fortaleza, a minha e do Caio, meu irmão, pois ambos nos apaixonamos nas mesmas circunstâncias. Muito cedo ouvimos Chopin quase que simultaneamente aos Beatles e Roberto Carlos. Minhas irmãs estudaram piano clássico e depois veio o Aulo, o mais novo, que já começou compondo canções surpreendentes. Eu falo dos elos porque a música, e mais fortemente a canção tem essa capacidade de oferecer fruição individual e coletiva, da participação do corpo, de quem embarca por um breve momento nessa cápsula sensorial feita de versos, melodia, ritmo e harmonia. A música, e, dentro dela, a canção, nos dá a oportunidade de pertencer a um pequeno casulo de identidade e de uma realidade sobre a qual endossamos o discurso do autor, nos emocionamos. É algo muito real, é pura experiência ou retorno à experiência vivida. Marca uma vida, a vida de todos. O corpo também canta e dela fica impregnado. Enquanto cantamos ou tocamos, estamos em nós mesmos e ao mesmo tempo muito longe, pois enquanto isso acontece nos abstraímos para outra realidade. A canção, para mim, talvez não viesse sem o Caio, pois ele foi o primeiro a compor, a me despertar a vontade de fazer o mesmo. Fazia músicas lindas e eu tentava também conseguir aquilo. Com a cabeça nas meninas e todos os hormônios viajando em Beatles e tantas vozes do rádio, ninguém poderia resistir. Eis a canção, a guitarra e a estrada. Aliás, “Eis a canção”, não por acaso é o título que o compositor Mário Montaut deu à nossa primeira parceria. E, veja que sincronia: por falar em Beatles, na alteração da dinâmica interna da canção ela foi depois rebatizada como “Para sempre campos de algodão”. Não é bonito? Tem também este outro aspecto belíssimo: dependendo da interpretação e da execução, a canção se transforma. Não seria exagero dizer que ela pode operar uma transfiguração do momento. Nesse caso a voz, sua cor, sua malha, suas particularidades têm um papel também decisivo. Uma bela canção é um gesto prolongado, uma declaração da vida ao mundo.
FM – O que chamamos de canção popular já perdeu os vestígios de sua origem. O mercado transformou em canção popular um produto imposto ao consumidor. Isto faz, dentre outros prejuízos, com que ela expresse o roteiro de uma campanha publicitária, e não que surja como referente de uma indigestão social. No entanto, essas preciosas são assinadas por alguém. O que significa hoje ser um compositor de canções populares?
GBP – Mais uma questão difícil, muito aberta. A canção é soberana. Sempre haverá a questão do talento, ou seja, a questão primordial. Não é a alteração das regras do jogo imposto pela indústria que vai enfraquecer o gênero, destruir talentos. Nesse momento, com certeza temos um cenário ruim, um desestímulo aos grandes autores e cantores em favor de uma porcaria assombrosa. A indústria vende o que a sociedade cria. Seu pecado mesmo é a reiteração, a multiplicação do que gera um mal estar vergonhoso. Esse lamaçal acompanha toda a atomização que vêm sofrendo as artes num ambiente onde não há horizonte, apenas o foco do momento, o imediatismo. Não há mais a obra, apenas o “single”, o funk escabroso. Do trovador da vila medieval, quando a canção foi tomando sua forma, ao trovador dos links houve uma dispersão do cenário interno, da identidade. Hoje há um discurso para cada gavetinha do mercado, este senhor sem face, o que parece inviabilizar aquela idéia antiga da MPB como depositária de um discurso da sociedade brasileira. A sociedade está mais complexa, o acesso mais fácil e a elaboração em geral é muito rasteira. Hoje, a relação com a música – não só a canção – perdeu profundidade. O enfraquecimento da indústria e a vulgarização da gravação de discos geraram um nível de produção cuja absorção é impossível. Ironicamente, downloads são feitos numa escala de fruição impossível. Está tudo muito confuso. O discurso publicitário está muito evidente. Por natureza ele é uma redução e isso rima com a pobreza cultural do Brasil, por exemplo. Mas estamos enganados se pensamos ser esse um fenômeno brasileiro. Parece que o Ocidente se transformou num grande pagode com futebol. Talvez seja cedo para procurarmos uma palavra final. É hora de dar à palavra “underground”, por incrível e contraditório que pareça, o seu verdadeiro significado. E devemos reconhecer que há espaço para tanto. É um espaço que parece aos poucos voltar a vibrar. Aliás, é preciso também reconhecer que lá atrás o surgimento do cinema e da indústria fonográfica desempenhou um papel importantíssimo para o florescimento da canção, aquelas canções e rocks e bandas que fizeram a trilha sonora de nossas vidas. Mas apesar deste cenário, se formos catar as pedrinhas veremos que o pop e sua imensa constelação de subgêneros ainda possuem uma força e presença impressionantes. A canção ainda é o próprio mapa da mina, ou seja, ela é o território, a identidade e o discurso do habitante, mesmo com a vulgarização que presenciamos. Resumindo, da invenção do fonógrafo ao download, a indústria possibilitou uma produção imensa, a criação de várias linguagens musicais. É sempre difícil unir o micro e o macro. Seria impossível imaginar Elvis Presley em outro momento, o grito primal de John Lennon não teria tido o mesmo alcance. O rock já tem sua literatura, a MPB tem sua história e as pedras continuam rolando. Ser compositor, hoje, pode ser também abdicar de uma idéia romântica de estrelato e riqueza e reafirmar sua paixão da infância. Os dilemas da música não estão separados das questões do empobrecimento cultural. Às vezes, também penso que já tivemos a neurose e que hoje vivemos a necrose. Mas posições assim, tão preto no branco, nunca se sustentam.
FM – A máxima publicitária “Deus criou o mundo” fascina a todos os artistas, seres em geral dotados de uma carência afetiva cujo diapasão espiritual não carece de mistério. Não há enigma, mas sim pobreza de espírito. Recordo este documentário sobre o Michael Jackson, que logo no início cita um desejo seu de se tornar o artista mais popular do mundo. O mundo – mundo é linguagem – é uma entidade muito curiosa. Certos substantivos abstratos se tornaram violentamente concretos, como o medo. Em muitos casos a realidade se esfumou, tornando-se uma abstração sem recurso. Não fazemos uma ideia concreta – exceto a ideia aproximada de todas as épocas – do que seja o mundo, de conformidade com nosso desejo. Na primeira metade do século XX o desejo definia o homem. O desejo era evocado em seu sentido de liberdade. Tornou-se depois um argumento de exploração sexual e consumo. O erotismo forçado das campanhas publicitárias foi desaguar na prostituição infantil. Evidente que Deus não criou esse mundo. Dividimos seu legado em três artérias: a ciência, a arte e a religião. Inventamos um deus para cada uma das veias. Como circulas por entre os bastidores dessa opereta?
GBP – Sinto um enlace de questões. É muito difícil chegar a juízos pela subjetividade das pessoas. No caso dos artistas, pior ainda. Olhando bem de perto, é raro encontrarmos um que não tenha suas fragilidades. Paul Gauguin, inseguro por não ter domínio sobre anatomia, desenho, se encontrou no primitivismo da Martinica e acabou sendo um precursor do fauvismo, ele que havia deixado de lado toda a turma do impressionismo. Foi pioneiro e entrou para a história ao lado de caras como Henri Matisse e Maurice Vlaminck. Michael Jackson é criatura da engrenagem, da indústria, mas por ser um grande artista conseguiu inventar a si mesmo, mesmo com toda fragilidade, esta tão gritante. Não me interesso muito por suas fraquezas egóicas, não era isso que ele levava para o palco. O mesmo poderia dizer da fragilidade e insegurança de Marilyn Monroe. Nesse caso, eu vejo muito mistério em cada diapasão. Não é fácil negar o intérprete, dançarino e show-man que foi o Jackson, por exemplo. Ele vem de uma linhagem, uma geração que começa com B. B. King, passa por James Brown e explode para o mundo com a cristalização da Black Music que foi criada pela Motown Records. Isso é uma invenção americana assimilada por grande parte do planeta. Penso que a valorização da liberdade e da expressão self-made man, signos da cultura capitalista americana, deram vazão à criação de um mundo onde a linguagem que o conduz é o erotismo e a valorização da liberdade e do desejo. É a sociedade do espetáculo, do pensador Guy Debord, em que temos que estar atentos para esta passividade e aceitação de toda representação. Talvez no seu oposto, o mundo árabe, onde o culto é proibido, onde não há esse apego excessivo a mensagens publicitárias, gurus de todo tipo, celebridades, atores e políticos não tenha essa inversão de valores causada pelo consumismo. Mas eu tenho esse defeito, o de pender para o que é demasiado humano, para o lado do anjo caído. Não seria capaz de ver essas manifestações apenas como símbolo de degradação. Acho que ciência é conhecimento e domínio desse conhecimento; arte, vejo como criação, invenção, a glória do engenho e da subjetividade que aumentam o repertório da existência. A arte põe no mundo algo que antes não existia. A arte cria mundos, a ciência os descobre. A arte põe os véus, a ciência os decifra. A religião é a terceira margem do rio. A fé talvez seja o fenômeno mais poderoso do ser humano. Quem tem fé não queima o pé. Já passei por fases de ateísmo. Hoje tendo a ver o mistério como manifestação do divino.
FM – O enlace foi proposital. Na medida em que desatavas o nó, fui recordando umas frases do Keith Richards que disponho aqui como uma sugestão para a seqüência de nossa conversa: “O talento é não interferir demais”, “Canções se escrevem sozinhas, você só as transporta”, “Nunca tive dificuldades para compor”. O processo de criação é sempre uma curiosidade referente à obra de cada criador, para mim uma intrigante curiosidade, porque o alimento essencial do espírito é a obra em si, e não seus bastidores. Então, mais do que indagar como crias, sugiro aqui abordar o que pensas desse talento evocado pelo Richards.
GBP – Bom, essas citações são um barato. Realmente, quando ouvimos canções incríveis, mesmo no caso de canções de amor tão radicalmente diferentes em suas estruturas e concepções, como por exemplo, Stand By Me (Bem King/Jerry Leiber/Mike Stoller) e Luíza (Tom Jobim), temos a impressão de que elas existem desde sempre, de tão perfeitas que soam. Existe o mito do autor como um sensitivo que capta as coisas no ar, como se estivessem feitas. É puro romantismo. Quando ele diz “não interferir”, na verdade se refere à observação e controle do que está sendo feito, de forma que a canção ao final soe “redonda”, ou seja, sem arestas, sem elementos gratuitos. Canções não se escrevem sozinhas. Obviamente, não há termos de comparação entre as duas, mas é claro que a primeira tem uma forma muito simplificada em relação à jobiniana Luíza. Aqui, caberia então chamar atenção do meu inconsciente, que acabou de escrever “jobiniana”. O que significa que o criador desenvolveu sua escritura, fundou sua obra com uma linguagem própria, com base em concepções, repertório próprio e talento tais que ela fez surgir uma nova área no universo das canções. Neste caso, o processo de criação no mundo pop usa menor número de recursos. Não ter dificuldades para compor é compor por prazer. O processo da criação é sempre fascinante, por isso há tanto estudo, hoje, na academia, sobre a gênese da criação. O apego às anotações sobre o processo de criação da obra. No meu caso, antes eu demorava pouco tempo para compor uma canção; hoje, minha observação leva um tempo maior, pois geralmente há o anteprojeto da coisa. Às vezes, a composição torna-se uma quase obsessão, os acordes podem ter diferentes desenhos, as palavras também têm sons, vogais que podem soar com pesos diferentes etc. Fazer tudo soar espontaneamente é sempre um desafio. O João Gilberto seria o melhor exemplo de obsessão com estes itens. Fazer a coisa sair da pulsão normal e ser lapidada na execução é algo sem fim. E há também a letra, a poesia que o canto enuncia, da maior importância. No final, como você já disse, o que conta é a obra em si. Destaco aqui minhas canções com Caio Sílvio, com o Floriano Martins, Aulo Sílvio, com Belchior, com o poeta Ricardo Alcântara e os compositores Mário Montaut e Cássio Gava, com estes últimos parcerias que apenas iniciamos. É um processo de afinidade bonito. No meu caso, minhas parcerias com o Caio Silvio, por exemplo, me são muito importantes. Neste caso, minha participação é sempre como letrista, o Caio é um compositor de inúmeros recursos. Já quando componho para os seus versos, por exemplo, tento me embalar na linguagem do poeta Floriano Martins, o que é um outro prazer, pois conhecemos profundamente nossas predileções e eu gosto muito quando recebo uma letra em espanhol.
FM – Em meio a este ambiente das parcerias, eu queria destacar uma delas, no caso da cumplicidade com o Daniel Taubkin, para o disco A Picture Of Your Life, quanto ao aspecto de que as letras foram resultado de mergulho em outro idioma. Escrever em uma língua que não é a sua ajuda a iluminar os argumentos da escrita?
GBP – Escrever em outra língua é transportar-se, antes, para outra cultura. É um atrevimento. Nesse caso, o trabalho resultou de termos uma formação musical muito parecida. Obviamente não foi nada fácil, tivemos sempre a leitura crítica do produtor do disco, o Roy Cicala, americano que produziu discos de grandes celebridades e hoje mora no Brasil. Tanto o inglês como o espanhol têm uma belíssima sonoridade. Conhecer expressões e a tradição daquele cancioneiro ajuda a entrar na levada que tem cada canção, mas é sempre aquela coisa da página em branco. As resenhas sobre o disco, lançado nos EUA, Europa e Japão nos deixaram muito satisfeitos.
FM – Em uma conferência que deu em Viena, em 1999, o compositor Nick Cave faz uma bela analogia entre música e silêncio: “Se o mundo fosse ficando silencioso repentinamente Deus seria desconstruído e morreria”. Esta conferência é valiosa, porque ele trata muito sabiamente acerca da canção de amor, do ato criativo visto a partir da tristeza (“a canção de amor é uma música triste, é o próprio som da tristeza”) e da teoria do duende defendida por García Lorca e uma densa tradição na canção de língua inglesa – Bob Dylan, Leonard Cohen, Tom Waits, Neil Young, Van Morrison – que lhe é devedora.
GBP – Que maravilha esta citação do Nick Cave. Acho que também somos herdeiros da tradição inglesa, assim como os EUA, estes de forma mais acentuada. A canção de amor, sendo de alta voltagem é imbatível. É um desses artefatos que me fazem crer na perenidade do gênero. Todos esses caras são fantásticos. Devemos a eles grandes momentos. A canção de amor é um ajuste de contas momentâneo. Como canção, ela acontece na redundância, na chegada ao clímax do refrão, que ganha força na sua reiteração. Não que a canção tenha uma forma definida e imutável. O mistério de canções assim é que depois de feitas parecem tão simples. De fato, há como que uma repetição do esquema, uma quase pobreza harmônica na utilização de poucos acordes, coisa que foi superada entre nós pelo refinamento vindo da bossa nova. Mas quando se vai fazer, meu velho, adeus facilidade. Fosse tão fácil assim, não teríamos todos nós compositores um leque considerável de começos de canções, pedaços delas e outros projetos que ainda não foram concluídos.
Essa metáfora de Nick Cave deve se referir a uma concepção mais oriental da paz e do mistério da existência. É algo muito comum entre músicos que tentam uma iniciação ao zen budismo. Sobre a teoria do duende, do poeta espanhol Garcia Lorca, é uma bela metáfora para falar da arte espanhola, especialmente a música e a dança flamencas como uma fonte de prazer visceral características da cultura espanhola. O duende, para nós, seria como “estar com a macaca” ou “estar possuído”. É, no fundo, uma afirmação do caráter distintivo que tem a interpretação, essa idéia que no linguajar moderno se fala “performance”. Temos poucos cantores entre nós que cantam com esse duende. Aliás, a bossa nova é uma domesticação, um refinamento desse bicho. A dança, o cantar dramático e a poesia espanhola têm na canção de amor uma das grandes manifestações de sua arte.
FM – De onde remontam as tuas afinidades musicais? Que música ouvias na infância e que percebes tenha sido de boa influência em tuas escolhas musicais?
GBP – Como um fenômeno familiar, nossas afinidades – minha, do Caio e do Aulo são as mesmas, com poucas preferências mais distintas. Donde se vê a importância do meio. Não temos nada a ver com samba, chorinho etc. Nossa área é mais da música brasileira a partir dos anos 1960, com uma pegada forte nos ’70, base de nossa formação. No meu caso, com a vinda para São Paulo passei a me interessar muito por uma área de canções sofisticadas feitas por compositores que vinham de um ambiente jazzístico. Tudo isso foi gradativamente soldado à minha formação de música brasileira. É o ciclo comum a todos; a diferença são as preferências. Pode parecer estranho ou esnobe, mas não é. Minha geração não foi afeita à sensibilidade telúrica do canto sertanejo, àquelas visões e formas – bonitas e preciosas – comuns a um universo onde a tradição da poesia moura que há no Nordeste de certa forma ainda se impõe. É neste ponto que podemos acrescentar, porque propomos naturalmente um sincretismo. Não fazemos a repetição, mas criamos um corpo de canções onde esta leitura não se apresenta em primeiro plano. Em situação alguma abrimos mão de nossas referências, da modernidade. Canções de nossas autorias que tiveram sucesso nos deram uma resposta muito feliz acerca dessas músicas. Como, por exemplo, Noturno, conhecida como “Coração Alado”, tema da novela homônima.
FM – Tens uma leitura muito elegante acerca da barbárie que estamos criando em cativeiro privado. Nós que nascemos nos anos ’50 no Brasil fomos atropelados por certa virulência já ajustada em linha nos ’80 e piorada gradativamente. Eu gostaria de te ouvir falando de algumas dessas canções, seu alcance, essa resposta feliz que mencionas.
GBP – Talvez tenhamos sido salvos pela arte, se é que fomos salvos. A barbárie talvez seja a mesma de sempre. Talvez nossa singularidade – que perante o mundo escapa ao trágico como uma manifestação de alegre potência – possa ser expressa numa questão: como um país de baixa cultura como o Brasil pôde transformar um artefato de alta sofisticação como a bossa nova em produto de massa? Hoje, sua influência internacional é indiscutível. Para nossa surpresa, o Paul McCartney declarou que pretende vir ao Brasil e gravar com músicos da bossa nova. É um argumento a que recorro para tentar responder a pergunta, apesar de minha formação pop. Poderia pinçar algumas canções que surgiram como bandeiras, quando geralmente elas aparecem como um delicioso cobertor com o qual nos embalamos. Cito Like a Rolling Stone, do bardo Dylan, uma canção de 1965, com mais de seis minutos de versos demolidores, que demonstrou sua incrível força marcando nossa geração e o mundo de forma inquestionável, com reverberações até nossos dias.
FM – A cronologia é o ambiente natural da história e a exploração conveniente do mercado. Entre o novo demais para morrer e velho demais para viver, a retórica oscila sem desconectar o cinismo automático. São reais as conexões que já mencionaste com a pobreza espiritual brasileira e o desgaste de certa mecânica cultural do Ocidente. Qual o relato possível de sobrevivência a tudo isto?
GBP – Alguém já falou que a retórica é a mais perigosa de todas as armas. Este assunto – a decadência – me parece sempre uma questão da ética. O cinismo a que você se refere antes é a regra, não somente no Brasil. Não sou economista, mas toda essa crise na Europa e na comunidade do Euro, por exemplo, me parece antes um problema da ética. Como diz o Belchior, numa de nossas parcerias, “O dinheiro é um deus cruel”, e a política seu servo fiel. Precisaríamos de homens, no lugar dos políticos. Acho que esse é um movimento circular. A rigor não há novidade, nos iludimos com as surpresas e as possibilidades que chegam com as tecnologias, mas a tortura e o massacre de crianças, como vemos hoje na Síria sempre podem estar no horizonte.
FM – Chegamos ao Kizumba-Mass como quem abre a página de um manifesto. Em um ambiente de novas mídias, como tornar esse disco acessível atualmente?
GBP – Tenho mais de 80 gravações, mas o Kizumba-Mass é meu primeiro e único disco, exceto por algumas participações coletivas as quais não curto. Gravei 21 músicas, das quais 15 foram para o CD, cuja ideia foi criar um móbile cujas peças seriam distintas entre si. O disco saiu pela gravadora Atração e tem as participações do Ednardo, Daniel Taubkin e Anastácia. A exposição do trabalho gratuitamente na internet é bacana e muito importante, mas é preciso resolver o problema da remuneração do compositor, que já era difícil pelos meios antigos.
(Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, editor e ensaísta. Dirige a Agulha Revista de Cultura. Entre os livros mais recentes, se encontram “Autobiografia de um truque” (2010) e “Susana Wald – La vastedad simbólica” (2012))
Grande entrevista, informativa e com pitadas de erudiçao bem dosadas. Pessoalmente, acho que se deve sempre temer a restrita disponibilidade do leitor ao se estender em argumentaçoes cuja finalidade, afinal, é leva-lo à musica. E esta nao dispensa o ritmo…