Pequena Sabatina ao Artista

Por Clarissa Macedo

 

Neste ano em que a pandemia instaurou uma nova operacionalização da existência, a leitura e a escrita tornaram-se ferramentas de possível manutenção da sanidade. Publicado em março, o livro As solas dos pés de meu avô, de Tiago D. Oliveira, vem construindo um percurso de alegria para um escritor cujo zelo com a palavra é notório. Para mapear alguns trajetos, entre o Tejo, o Tororó, o Paraguaçu e outras paisagens, sondei linhas de acesso ao livro mencionado, além de projetos em movimento e futuros, a conquista do Selo João Ubaldo Ribeiro e a sensação que o isolamento social impôs à face literária do autor.

Celebradas pela posição de finalista do Oceanos, um dos marcadores do campo literário atual, As solas… possibilitam uma pausa para a territorialização dos fios invisíveis cibernéticos e um chamado à memória-ancestralidade na figura de um avô desencarnado que enseja uma profunda contemplação do mundo. A memória, essa construção imprecisa de sensações e acontecimentos, exige um afastamento da imposição do agora para a passagem de um outro instante, um instante passado. Em As solas…, além do que pude desvelar no prefácio do volume, interessa-me, neste momento, a cisão que a obra provoca ao abordar um lócus que transcende as cibermalhas, pois a elas resiste: o espaço fora dos centros. Nesse aspecto, são dois os móbiles de insurgência que me intrigam, modulados, por sua vez, através da fratura do tempo e da abertura ao exterior da tela, desencadeando uma narrativa poética que ilustra uma saga a partir dos pés, da ancestralidade e do amor.

Guy Debord afirma que a espetacularização comporta uma mediação de imagens e aparências. As redes sociais, o apego à digitalização de tudo e a própria internet contêm o fetichismo do espetacularizado que reveste, no contemporâneo, todas as zonas do humano. A urdidura do digital, como interfere na condição humana e quais as formas de vivenciar o toque na tela que nos toca são questões que se impõem. A literatura é um terreno aberto para isso, um domínio de resistência onde o digital é sangrado e desvelado. Por isso, ler Tiago D. Oliveira, hoje, em que a pandemia permanece muito por conta de notícias inverídicas a respeito do vírus que a move, parece-me necessário. Desde Distraído, passando por Contações, até o livro mais recente, a qualidade estética, as referências textuais (Tiago é um leitor voraz) e a reterritorialização conformam uma obra cuja matriz é a da beleza.

Abaixo, segue a conversa que tive com o autor. Desde já, agradeço a Tiago D. Oliveira, por ter cedido um pouco de seu tempo para nós, e ao editorial da Diversos Afins pelo crédito do espaço. Abraços e boa leitura.

 

Tiago D, Oliveira / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Em As solas dos pés de meu avô, difícil não notar a figura de um patriarca a marcar o percurso narrativo-poético. Há um movimento catártico e/ou de expurgação (independentemente se factual ou mais propriamente ficcional)?

TIAGO D. OLIVEIRA – O primeiro pensamento sobre a escrita desses poemas foi na direção de um resgate. Ele nasceu de uma necessidade, a de tentar entender o muito além dos deslocamentos dos corpos, o que fica quando não há mais a chance de um abraço. Eu, que já havia me distanciado geograficamente, pois vivia em Portugal na época, agora via a distância girar em seu próprio eixo como faz tão naturalmente a natureza. A distância não seria só material e seguiria o rio de nossas existências para outro lugar. Coloquei para fora o primeiro e segundo poema da sequência que se tornaria um livro bem depois. Inicialmente não havia uma vontade de livro. O que existia era a necessidade de colocar na mesa as minhas armas para gerir o desconhecido que me limitava, já que não podia largar o emprego em Lisboa nem tinha condições financeiras para voltar ao Brasil e beijar a testa de meu avô. Escreveria. Os poemas foram nascendo deste momento, mas só escrevi o terceiro quando já estava no Brasil, alguns poucos anos depois. Os versos foram ganhando especulações, leituras, rememorações, recriações, tatuagem que se desenhava em minha carne ao passo em que as geografias do afeto afloravam em mim paulatinamente. O sentimento de saudade em Portugal é uma experiência muito especial e única, aqui no Brasil ele se tornou mais pesado quando caminhei na terra com os pés descalços. Refletir sobre o método catártico que Freud aponta e no fim concluir que estes versos são uma voz que procura o equilíbrio saudável a partir da linguagem, uma voz que busca substituir o sentimento da impossibilidade do ato por um movimento realizado pela linguagem, pela escrita em si, foi o que entendi nesse caminho. Aqui o patriarca exerce a continuação de sua caminhada impondo à morte a vitalidade da escrita a partir de quem ficou. E já não há ficção nem realidade, tudo é transpassado continuamente pelos revérberos e arrepios que acontecem após cada leitura destes versos, destes caminhos, em cada leitor.

 

DA – Como você estava em Portugal, mais precisamente em Lisboa, a distância do Brasil, e, logo, de seu avô, funcionou como parte do processo de construção do livro. Além disso, como foi experienciar a terra de Fernando Pessoa também na condição de escritor – e brasileiro? A cisão, ao menos em parte, com a pátria, sob o signo do estrangeiro, o corte tátil com a geografia da Bahia: tudo isso impactou sua literatura de algum modo?

TIAGO D. OLIVEIRA – Andar pelas ruas de Lisboa produz um sentimento familiar, é a mesma sensação da folha em branco diante de mim. A cidade oferece uma intimidade maior com os versos que lia na UNL ou no meu quarto. A sensação que tinha era a de viver constantemente no trânsito das leituras, só que tocando, caminhando sobre as palavras, os versos. Um amigo de infância, que também morava em Lisboa na época, teve a sorte de morar ao lado de uma das casas em que viveu Fernando Pessoa e nunca percebeu aquela sorte, o que mudou quando fui visitá-lo pela primeira vez e depois disso aquela imagem não saiu mais de minha cabeça. Outros episódios como esse foram somados durante os anos, mas o que ainda é forte no emaranhado das imagens de minhas lembranças é o desenho afetivo que a cidade constrói em nós. As ruas, a arquitetura, o movimento da carris durante o dia, o tejo, tudo figura como a construção de uma literatura em face de sua realização a qualquer momento. E assim aconteceu um convite para participar de uma antologia de poemas, depois de contos e lá estava eu usando a cidade para recriar a própria cidade, pois era esse o sentimento quando escrevia sobre minhas impressões ao mergulhar cada vez mais na cultura do lugar, era um brasileiro vivendo em outra cultura e reproduzindo aquelas influências a partir de uma escrita em constante transformação. Penso que a minha poesia começou a entender que a transformação é a melhor linguagem exatamente nesse momento. O corte com a minha Bahia começava a se desfazer ali, diante da saudade a escrita, já envolvida pela cultura lusitana, pelos poetas todos, acontecia como instrumento funcional para re/criar, re/viver. Comecei a pensar e sentir novamente a minha terra, agora de uma maneira muito mais profunda e real, depois que percebi que por mais que viajasse, a natureza de meu olhar, mesmo estrangeiro, carregaria sempre o Brasil, a Bahia em mim. O impacto sempre foi o de elevação, sempre olhei e senti assim, para frente.

 

DA – Muito produtiva a relação reterritorializada com os espaços Portugal-Brasil e que, aliás, é bastante cortejada pela crítica lusófona. Interessante mencionar, nesse aspecto, o prêmio Oceanos, de literaturas de língua portuguesa, em que você é finalista este ano com As solas dos pés de meu avô. Como tem sido essa experiência?

TIAGO D. OLIVEIRA – Bacana você tocar nesse ponto, pois há aqui um lugar imenso de afeto, de reencontro. Ao passo que caminho pelas solas de meu avô nesse livro, conecto-me também com Portugal e percebo a cada dia que somos, nesta minha perspectiva, uma só experiência, a poesia. Estou vivendo um momento muito especial com o reconhecimento do meu trabalho, que geralmente é muito solitário e sem pretensão alguma. Há anos longe de Portugal, mas toda vez que escuto aquele sotaque, sinto como se tivesse retornado ontem para o Brasil, que o tempo não passou. A possibilidade do prêmio me fez acessar novamente um velho sentimento de pertencimento, um chamado híbrido diante do Tejo ou do Dique do Tororó, sua soma. O conforto é que somos todos filhos de uma mesma língua, mesmo com inúmeros mecanismos internos de reconfigurações constantes, somos todos saídos de uma mesma boca. Mas o coração anda apertado com essa reconexão com um tempo muito feliz de além mar. Um lugar re/encontrado. A parte funcional de todo esse movimento chegado com a indicação de finalista para o Prêmio Oceanos 2020 é que a alegria é imensa, servir de exemplo para outros meninos de periferia, como eu fui, é uma chance de fazer algo bom, motivador. Mas o que fica depois do vento ainda é a página em branco e eu confesso sem medo que essa é a imutável realidade de quem escreve, é o chão de todo autor, é a certeira paz que me recebe de volta. Que bom! Mesmo sabendo da natureza passageira dos prêmios, confesso que é bom sentir as mensagens das pessoas, o carinho, o brilho nos olhos. Penso que As solas dos pés de meu avô ainda vão me levar para lugares diversos.

 

DA – O “velho sentimento de pertencimento, um chamado híbrido diante do Tejo ou do Dique do Tororó, sua soma” remete à fragmentação tão incensada do indivíduo contemporâneo. Isso interfere noutros trabalhos, a exemplo de projetos anteriores ou mesmo inéditos? Ou o “chão de todo autor”, a página em branco, resvala em mistérios diferentes a cada livro? Consegue identificar tais aspectos na própria obra?

TIAGO D. OLIVEIRA – Essa fragmentação é realmente um traço contemporâneo que compõe o olhar de quem escreve. As nossas horas são invadidas por diversos tempos e espaços e muitas vezes já nem notamos, acostumados com o ritmo normal da vida imediata. Mas há a palavra escrita, a literatura. Assim são os dias, entre a memória e o tato. Penso que quanto mais o tempo passa, mais aumenta essa nossa busca por um pertencimento que se faz na fragmentação. E agora digo pensando também nas vidas criadas no papel. O meu trabalho está mergulhado nessas águas, a do Tejo e a do Dique. Estou inteiramente atravessado por essa chance do sentir, do criar, do referenciar, assim aconteceu com um livro que escrevi, Contações, que bebe de um lugar que não existe mais, de criaturas reimaginadas e grafadas como partes de um mural construído para essa ideia de pertencimento. Personagens inventados, rememorados, todos abraçados por essa fragmentação, cada um representa um lugar perdido de geografias e eras distintas. Quando escrevo, junto todas as naturezas sob a minha, paulatinamente a preencher a folha em branco com palavras. O chão que piso é feito de possibilidades, a cada livro que realizo pertenço um pouco mais a essa multiplicidade e ao mesmo tempo, sendo todos eles, fragmento-me um pouco mais. Talvez seja essa a ideia de modernidade que merecemos, a que não conseguiremos tão cedo nos livrar. Quando escrevi As solas dos pés de meu avô, novamente não consegui fugir dessa fragmentação que me faz. Lá estão o sertão profundo, a urbe e um outro país distante. Lá estão o avô, o pai e o neto. Três tempos e espaços distintos que são acessados pelo corpo da fragmentação intuído pelo sangue do autor, que escreve justamente por conseguir pertencer, mesmo sem nunca ter vivido. Estou a escrever um novo livro sobre Saveiros, o que me corre pelas mãos são as águas novamente, não as do Tejo nem as do Dique, mas as do Paraguaçu. Novamente escrevo com o sentimento de pertencimento, mesmo sem nunca ter vivido, o que me faz alcançar essa atmosfera de um recôncavo histórico que abastecia a capital é a fragmentação que me acolhe enquanto pesquisa, enquanto ato de talhar o verso. Os mistérios costurados na derme da escrita de cada livro são consequências de um caminho em que pertencer e não pertencer são faces de uma mesma moeda. O jogo da escrita possibilita também essa imagem. Agora olho para a janela e o silêncio da noite me faz ouvir o barulho do relógio, lembro de Pessoa diante do mundo e a heteronímia de sua criação. Lembro também de Drummond, em a Máquina do mundo, quando o poeta nega aquela imagem e vai embora. Sigo em posse dessa herança e gozo agora do silêncio que antecede o sono. Fim. Amanhã já não sei, pode ser tudo diferente.

 

Tiago D. Oliveira / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Acima, você traça um pequeno tratado sobre os desdobramentos do ato de escrever, além de citar um livro inédito, Saveiros. Muitos autores, em meio à pandemia em curso, têm alegado que a escrita funciona como salvação. Como tem sido para você? Muitos projetos novos? Saveiros nasceu com a quarentena?

TIAGO D. OLIVEIRA – Com a pandemia vieram muitas mudanças rapidamente, tivemos que aceitar e transformar o que nos foi imposto com tanta força. A única realidade que não sofreu foi a leitura, a escrita. Aliás, finalmente havia tempo para a leitura, para a organização de algum projeto de escrita. E assim, mesmo continuando a dar aulas via internet, de alguma forma ficamos mais disponíveis para o sol se pondo, para o barulho do vento entrando em casa. Há tempos venho acumulando leituras sobre os saveiros para um futuro, o que nunca acontecia por causa da implacável falta de tempo, e nesses meses consegui ler muito do que desejava, dissertações, artigos, livros, reportagens, o que alimentou mais ainda a minha vontade de conviver com todo aquele universo. Então eu tinha tempo e uma vontade de escrever que só crescia. Iniciei os versos mesmo sem ter colocado nada no papel. Os poemas começaram a ser escritos em mim enquanto a liberdade reinventava um livro como rio para que aqueles saveiros, que criava como versos em minha cabeça, pudessem navegar novamente. Escrevo com os dias atravessando as palavras, tudo o que sei é medido por versos que repito biblicamente e tento aceitar o que não posso mudar e tomar o que me cabe. Os saveiros são mais uma ferramenta de resistência ao duro tempo que vivemos, assim como os acordes do violão, as contas amarradas na ponta do lápis, as lives ou as receitas de pão. A quarentena trouxe-me uma chance de desacelerar, mas também me possibilitou a construção de um projeto que vai muito mais além da minha condição de isolamento.

 

DA – Você ganhou este ano o Selo João Ubaldo Ribeiro. Pode comentar um pouco sobre?

TIAGO D. OLIVEIRA – Recebi uma ligação da rádio educadora me pedindo para falar sobre o selo João Ubaldo, que meu inédito, Soprando o vento, tinha sido contemplado neste ano de 2020. Fiquei muito feliz e acabou passando um pequeno filme em minha cabeça. Quando comecei a escrever poesia tinha a idade perfeita para sonhar, sem o coração calejado por alguns movimentos naturais da vida. Acho que aquele menino de Sete de Abril vibrou dentro de mim com a notícia. Ganhar um prêmio em minha cidade sempre foi uma imagem distante, mas algo brilhava ainda em mim e depois que a ficha caiu entendi que sou a melhor propaganda de que é possível nascer na periferia, sonhar com um mundo distante e um dia realizar. Esse prêmio do Selo João Ubaldo Ribeiro representa para mim uma semente plantada em tantos corações, tantos meninos e meninas de periferia que vão  perceber  que com leitura, estudo, fé, tudo acontece. Sigo acreditando na poesia e nas pessoas.

 

DA – Gostaria de deixar alguma mensagem para as suas leitoras e leitores?

TIAGO D. OLIVEIRA – Queria deixar aqui a alegria que sinto quando abro um livro.  A paz que me toma quando termino de escrever algum projeto, quando os poemas estão dialogando. Queria deixar aqui a minha fé em um mundo feito por pessoas que acreditam nos livros, que se encantam com as pequenas alegrias. Queria dizer que a escrita se tornou uma maneira de entendimento e localização do mundo, cada livro escrito é um universo que re/descubro e aceito caminhar. Queria agradecer por uma troca tão agradável que foi essa entrevista. Estar aqui é acreditar na palavra, é seguir. Leiam. Leiam. A leitura é a grande riqueza nos dias.

 

Clarissa Macedo (Salvador – BA), mestra, doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora e pesquisadora. Publicou a plaquete O trem vermelho que partiu das cinzas (Pedra Palavra, 2014) e os livros Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, 2014; traduzido ao espanhol) e O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição (Ofícios Terrestres, 2019).

 

 

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1 comentário

  1. Entrevista fabulosa! Um homem sensível, rico, com uma visão ampla e poética sobre o mundo! Amei!

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