Por Fabrício Brandão
Não passamos pelo mundo sem sermos tocados por algo que nos desafia. Vista assim, de modo apressado, talvez esta frase soe até mesmo um tanto frágil. Quiçá seja melhor dizer que não estamos aqui pelo planeta de modo inteiramente descompromissado, soltos e embalados pelo vento. Somos marcados pelas paisagens humanas que se nos afiguram cotidianamente, impelindo-nos a repensar nosso papel diante do Outro.
A vida enquanto uma comunhão de anseios: eis um propósito possível. E não precisamos concordar em tudo para que convivamos melhor uns com os outros, pois mentes e corações são capazes de nos dar sua contribuição em meio ao engenho da diversidade de pensamento. Estamos aqui a falar do entendimento necessário sobre as nossas diferenças até o ponto em que isso possa representar um caminho viável para uma, digamos assim, lucidez social, esta que também nos faça agir de modo mais harmonioso.
Se utopia ou não, o fato é que um mundo melhor passa por transformações que primeiro partem dos indivíduos, engendradas que estão nas porções internas de cada pessoa. Diante do desassossego que insiste em nos rondar hoje, a palavra resistência nos é por demais preciosa, sobretudo quando ela se inclina a combater os atropelos e insanidades que tanto ferem a nossa dignidade. E é um verdadeiro alento perceber vozes que se insurgem contra os desvarios do presente. Gente como a poeta goiana Dheyne de Souza nos faz acreditar que resistir não é mero artifício retórico, mas uma causa que se respira cotidianamente.
Nas mãos de Dheyne, a literatura é instrumento, palavra afiada que atravessa e sensibiliza, motor de estados da alma, indignação, clamor, escuta, encantamento, espanto e estranhamento. Ler seus versos implica num exercício de mergulhos intimistas que reverberam notícias de um mundo que também é nosso, esse mesmo que exige incansavelmente nossa cota e sangue. Desde “Pequenos mundos caóticos” (PUC/Kelps, 2011), seu primeiro livro, a autora já nos apresenta sua verve existencial a fluir entre as dimensões internas e externas da pulsação da vida. Mais recentemente, ela nos brinda com o seu “Lâminas” (Martelo, 2020), obra que movimenta recônditos líricos com o olhar delicado e incisivo sobre a nossa tão conturbada contemporaneidade. Então, coube à poeta, em seu último rebento, lembrar que estamos vivos e que há, sim, antídotos contra a crueldade e o esquecimento.
Na entrevista que agora segue, Dheyne de Souza é potência, pensamento e ato, principalmente quando divide conosco suas reflexões sobre o agora que tanto nos tem trazido desarranjos de toda ordem. É a poeta que nos fala sobre sua trajetória com as palavras, capaz de nos brindar com dois poemas inéditos em meio ao desenrolar de um diálogo que tenta sondar um pouco do que somos e daquilo que nos tornamos até então.
DA – É impossível percorrer “Lâminas” e não notar ali verdadeiros atravessamentos da alma humana. Há o labirinto de paixões que se cruzam, a sondagem dos desejos e mistérios e a conta de um presente insano. O que dizer dessa mescla de sensações a serviço da palavra?
DHEYNE DE SOUZA – Primeiramente, Fabrício, quero agradecer pela presença constante nessa travessia de poesia, pela escuta e também por acolher “lâminas” e ter essa gentileza de olhar esses versos meio cortes. Bem, tentarei responder como posso, e não estamos conseguindo poder muito, não é? Eu tenho achado isso. Então, por favor, releve os hiatos os parênteses as indeterminações. Talvez eu dance pelas perguntas de um modo um pouco errante, talvez disperso, talvez reticente. Ando (andamos?) assim. O que dizer dessa mescla de sensações a serviço da palavra? Nem sei o que dizer, na verdade. Acho que “lâminas” foi se construindo assim, entre a tentativa de dizer e essa parede de empecilhos (o que dizer desses últimos anos no país, no mundo?). São poemas gestados por mais ou menos uma década, em que as sensações (arrisco dizer, sem estar certa se é, aviso) foram se encontrando, cada vez mais, com a insanidade do presente. O livro foi publicado neste fatídico 2020. Tenho dito (ou justificado) que não consigo responder a este ano com reflexões teóricas ou críticas satisfatoriamente objetivas ou sei lá. Só tenho tido (não, não é preciso) respostas estéticas, que vêm, como sabe, no terreno das dúvidas. Acho que “lâminas” (e nisso preciso dizer de mim, não de todos, mas o que eu gostaria mesmo é de saber como é para os outros) atravessa em mim um campo enorme de dúvidas, especialmente, agora, sociais. E a linguagem tem algo a nos dizer da cicatriz que fica nela, acho. O que dizer dessa mescla de palavras a serviço das sensações também, não é? Por que atalho porventura batalha deixamos nossas almas? Deixamos? Sinto que estou mais propensa a perguntar que responder. Não sei. A poesia diz?
DA – Diante das angústias e incertezas que experimentamos, poderia a poesia nos ajudar a suportar a realidade?
DHEYNE DE SOUZA – Eu acho a poesia uma possibilidade. Gosto de pensar não como um apoio para suportar a realidade, mas como uma indignação que confronte, questione, critique esse “real”. O que sabemos do que é real? Não sei. Acho que a poesia nos fortalece as dúvidas. E gosto de pensar na poesia em um sentido amplo, para além das fronteiras de gêneros literários, acadêmicos, enfim. Gosto de pensar a poesia como esse sol corajoso que se põe, o vento que deita as folhas do mato, que movimenta alguma emoção, que nos lembra alguma coisa de nós que está no sem nome, ou o sol o vento o mato a emoção que porventura cai numa linha. Para lembrar que é de todos (acho que nunca achei tanto como agora que somos esse todos, que nós = um & outro). Gosto de pensar que a poesia, esse algum estado do que flui em nós, toca-nos e ao outro, se permitimos, se oferecemos, se aceitamos, se lutamos, são muitos “ses”. Sinestesias. Saraus. Sons. Acredito (ou procuro acreditar) que, com alguma consciência de uma incerta “onipresença” dela, entramos mais fundo nas angústias e incertezas que experimentamos. Enfrentar o medo disso. Daí, de dentro de nós, inúmeras outras possibilidades. Conhecimento. Partilha. Resistência. Lembrança de alguma coisa que não sei exprimir. Talvez a lembrança de que somos queremos ser seremos humanos. O que é o humano? Quero acreditar que sim.
DA – “Lâminas” toca em temas sociais que nos são muito caros. Marielle Franco está ali presente e, só em pronunciarmos seu nome, toda uma simbologia de resistência emerge. Ali também está Evaldo dos Santos Rosa, homem negro que morreu ao ser alvejado com 80 tiros disparados por militares contra o carro em que também estava sua família. Falar sobre tais chagas abertas é também um clamor contra o esquecimento?
DHEYNE DE SOUZA – Acredito que seja principalmente um grito contra o esquecimento. Especialmente no momento atual, com um governo que é uma vergonha para qualquer tipo que imagino de humanidade, são ainda mais essenciais, na minha opinião, gritos contra violências, racismos, machismos, desigualdades, entre outras pautas importantíssimas. Marielle está presente e, de fato, é símbolo de resistência. São inúmeros nomes que merecemos lembrar e registrar na história. Crianças foram assassinadas pelas mãos de policiais, elites, preconceitos. Estamos morrendo a cada dia por quê? Fabrício, acredito que já está passando da hora de mudarmos várias coisas nesta sociedade cujo templo é o capital, de adoração patriarcal. Mudanças drásticas, enormes, pode até ser que utópicas. Mas é esse o tipo de sangue que anda correndo em minhas veias e que sinto escapar de “lâminas”. Às vezes me debruço na janela e penso tanto. Eu sei que são poucos os que têm força e, especialmente, esperança de mudanças tão enormes. Mas eu acho que é o que pode nos movimentar. Não quero achar possível que Marielle morra todos os dias pela falta de impunidade e pela tentativa de apagamento dessa memória. Não. Não quero imaginar que 80 tiros sejam apenas um símbolo debaixo do tapete, porque na verdade foram muitos mais. Não. Nem que o golpe vista outro nome, ou a ditadura militar, ou o genocídio e etnocídio de indígenas, negros, mulheres, LGBTQI+s. E, enquanto não quero pensar nisso, escrevo. Escrevo porque acredito que as literaturas podem lembrar à história… sabe? E porque escrevo como resistência, como luta e com a seguinte utopia alimentando atualmente meu peito (segura esta): vem aí a era feminista. Avante.
(em desespero o eu lírico pede SOCORRO)
clarice, foram mais de 80
carlos, já não há rio doce
manoel, o quintal está vedado
manuel, me recuso a pasárgada
paulo, o opressor está no cio
diadorim, conta a sua versão
macabeia, sem remédio a angústia
capitu, até hoje o bentinho
iracema, anagrama de queimas
marielle, quem mandou lhe calar
mariguella, onde estão vossos filhos
ágatha, quantas balas da escolta
mari, o culpado É o estuprador
(poema inédito)
DA – Como você vislumbra uma vindoura era feminista?
DHEYNE DE SOUZA – Não sei se exatamente vislumbro. Acho que mais intuo ou percebo (e nisso posso até estar equivocada, mas estou aqui dando apenas opiniões… então vamos lá). É o que estou observando e pensando. Eu conheço tantas mulheres incríveis, que têm trabalhado incansavelmente, seja na literatura, nas artes, na educação, na economia, no jornalismo, no lar, enfim, em qualquer trabalho, eu tenho visto tantas mulheres enormes, fortes, cheias de coragem. Estão por aí, em toda parte, suando. Cozinham, cuidam da casa, trabalham fora, criam filhos, sonham, escrevem, dão aulas, fazem lives, participam de saraus, falam, gritam, dizem não. É um movimento grandioso, é o que sinto. É muito trabalho. Porque toda essa indignação está na garganta há séculos. Você já imaginou? Sobrevivemos ao fogo. Estamos falando, fazendo, lutando. O que quero dizer é que acho que, se olhamos bem, em todas as partes, estamos. Sabe?
DA – Isso que você acabou de mencionar é algo muito vivo e poderoso. Parece que temos avançado um pouco no processo de redução de invisibilidades no que se refere a pensar o ativismo de muita gente. E notamos que não basta o empenho apenas daqueles que sempre sofreram os apagamentos, mas também é fundamental a adesão de tantos outros grupos sociais, inclusive os que sempre detiveram privilégios. Reconhecer-se parte do problema e ser vigilante quanto isso é um começo?
DHEYNE DE SOUZA – Eu acredito que sim, é um grande passo reconhecer-se parte do problema e também da história e também das rédeas, não é? A gente sabe que é muito difícil avaliar o momento presente com uma lente justa. E eu tenho sentido que o momento presente tem pedido extrema e intensa atenção. Tenho sentido a escrita como um campo talvez não de batalha (embora a luta seja necessária), mas de movimentação, de questionamentos, de dúvidas, sabe? Não sei se sei explicar. Acho que esse volume crescente (tenho também essa impressão) de atitudes que questionam nossas bases cheias de preconceitos, traumas sociais e desuniões, enfim, carrega uma força de uma luta absolutamente justa e necessária. Vamos?
DA – Você tem razão quando diz que essa luta é deveras necessária. Na Literatura, por exemplo, há várias frentes em ação advogando por vozes de mulheres, negros, pela comunidade LGBTQI+, dentre outros. Como você observa essas pautas identitárias transitando pelas produções literárias?
DHEYNE DE SOUZA – Com bastante entusiasmo, especialmente porque, nas nossas manifestações literárias, estão gritando as vozes de mulheres, negros, comunidades LGBTQI+, indígenas, entre outros grupos minorizados socialmente. Acho esses gritos, Fabrício, importantíssimos. Ouvi-los me dá uma força enorme. Tenho lido autores contemporâneos (dessa contemporaneidade que está aí na porta, aliás ouvindo pancadas fortes), digo dos últimos dois, três anos, por exemplo. Eu fico extremamente emocionada com esse presente explodindo em várias formas (e vozes). Tenho receio de citar nomes e cair no fatídico equívoco do esquecimento (com o qual, feliz ou infelizmente, já estou me habituando), mas gostaria de citar alguns nomes não porque tenho condições para tal (quem é que tem condições para tal em um país desse tamanho com os nossos níveis de desigualdades, me pergunto, mas vamos lá), mas porque estão ecoando forte com nossa conversa. Neste 2020, emocionei-me transbordantemente com a leitura de “N’oré Îukaî Xûéne!” (editora Patuá, 2020), da goiana Suene Honorato. Do tupi antigo, o título do livro faz um convite de reflexão e também de revisão da nossa história (e da potencialidade de nossa garganta): “Não nos matarão!”. Também morri um pouco com a leitura de “A mulher que nasceu sem metafísica” (livro no prelo), da também goiana Tarsilla Couto de Brito. Esse título pede muita reflexão. Tem “Bruxisma” (Urutau, 2019), dessa personalidade humana que é a Pilar Bu. Exemplo de força pra mim e desse som alto que digo que nos espreita, assim como ouvi ranhuras altas quando li “Modus operandi” (R&F, 2017), da Thaise Monteiro, mulher-escrita que é corpo-arte. “Cobra criada” (martelo, 2019), do Mazinho Souza, foi outro livro que me despedaçou o sangue negro que me corre a condição de estar e ser. “Uma casa se amarra pelo teto” (Macondo, 2019), da Viviane Nogueira, é algo que ainda estou desamarrando em mim. Enfim, há muitos nomes, muitos livros que me arrebentaram (e eu digo isso em tom de entusiasmo mesmo, porque acho realmente incrível). Fernanda Marra, com “taipografia” (martelo, 2019); Camila Assad, com “desterro” (Macondo, 2019); Wesley Peres, com “o corpo de uma voz despedaçada” (martelo, 2019); Wilson Alves-Bezerra, com “Malangue malanga” (Multinacional Cartonera, 2019); Lubi Prates, com “Um corpo negro” (nosotros, 2019); Arthur Moura Campos, com “5into” (Selo Doburro, 2019); Tarso de Melo, com “Rastros” (martelo, 2020); Natasha Felix, Ana Beatriz Domingues, Bruna Mitrano, há muitas, muitas vozes em todos os cantos. Precisamos ouvi-las e partilhá-las mais e cada vez mais, na minha opinião. Enfim, são leituras mais recentes que dizem tanto do nosso presente que.
DA – Junto com Helô Sanvoy você mantém no You Tube um canal de leituras de textos literários variados, o Pequenos Mundos. Como foi a concepção desse projeto e como tem sido a experiência, seus desdobramentos?
DHEYNE DE SOUZA – Sim, o Pequenos Mundos. Foi uma ideia que surgiu processualmente, como se fosse um rastro (na virtualidade do nosso tempo) para leituras variadas mesmo. Um lugar para deixar lá essa coisa que tenho achado tão importante, cada vez mais, que é a leitura “em voz alta”, como se diz. Eu sempre gostei muito de ler “em voz alta”, desde pequena (na verdade, fazia leituras em murmúrio, para não chamar muita atenção, que o negócio comigo foi meio que assim muito reservado, digamos assim). Faço isso muito com meu próprio trabalho, avaliando o impacto do ritmo no tema (e vice-versa), procurando achar a rachadura na língua que faz a palavra sair. Quem deu a ideia do registro em um canal foi o Helô Sanvoy, que é meu companheiro de vida e de arte (possível separar?). É um trabalho que tem inúmeras lacunas, inclusive temporais. Às vezes, ficamos muito tempo sem “atualizar” o canal, por forças maiores, como viver cotidianamente e suportar o político que há nisso. Com a pandemia, senti uma necessidade muito grande de ler as vozes contemporâneas, de que falamos há pouco. Com essa vontade, retornou certa frequência de gravações e publicações. Também teve papel importante a publicação do “lâminas”. Quis divulgar alguns poemas em vídeos (também alcançando a índole instagrâmica da nossa época). Ler e publicar as leituras também foi uma espécie de compartilhamento de poesia, logo, quem sabe, de resistência, de fôlego, de indignação, de uma vontade de alcançar o outro de algum modo. Eu também faço parte de um grupo goiano de vocalização de poesia chamado Corpo de Voz, dirigido por Jamesson Buarque e Maria Ritha. Tem um corpo extremamente variado e potente de vozes, uma coisa linda de se ver e ouvir. O Corpo de Voz também tem um canal, em que há leituras tanto dos membros quanto de convidados espalhados Brasil e mundo afora, além de aulas e depoimentos sobre vocalização. É um trabalho muito importante e bonito, na minha opinião, que vem desse coração gentil e generoso que é Goiás pra mim. Tenho notado muitas manifestações assim, em que ler ou performar um texto convida a reflexões críticas e atitudes propositivas. Saraus, slams, batalhas de rap. Estamos vivendo uma época (e isso tem muita relação com o que falamos antes dessa reverberação de vozes representativas de inúmeras lutas) repleta de possibilidades, que não escondem nem minimizam as mazelas, mas arriscaria dizer que partem delas (também) para explodir. Não quero soar utópica nem otimista diante das gravidades sociais, políticas e atualmente sanitárias, mas quero manifestar que tenho olhado para as experiências e experimentações artísticas procurando pensar no que pode estar acontecendo com o compasso da história no nosso tempo. E também (talvez mais ainda) procurar formas de resistir e participar (para mim, escrever é uma forma de resistência, por mais que já se considere isso uma opinião démodé). Sei lá. Quero pensar o presente junto. E dizer disso algo.
DA – Goiás te deu régua e compasso?
DHEYNE DE SOUZA – Adorei a pergunta, principalmente porque pressupõe cortes arriscados (risos). Vou escolher uma via de resposta que pode fugir um pouco da referência, mas a imagem evoca medidas que me instigam a comentar. Goiás talvez tenha me gestado na desmedida do vento, do mato, do silêncio, da imaginação. E quando digo que sou goiana a pretensão é bem elástica mesmo, inclusive em termos geográficos. Nasci em uma cidade situada no mapa, hoje, no estado de Tocantins. Mas em 1983 ainda era Goiás e continuou sendo enquanto eu ainda estava lá. Com dois anos: de lá para o interior goiano, onde cresci conversando (estranhamente, para alguns) com as vacas antes mesmo de desconfiar que existiam medidas filosóficas nisso. Agora mesmo enquanto escrevo, lembro a sensação nas costas da grama da tarde quando deitava para adivinhar figuras nas nuvens. Só muito depois, vieram as nuvens de Baudelaire (digo do texto “O estrangeiro”). Diria que Goiás me deu sinestesias nos descompassos.
DA – O quanto Dheyne de Souza conhece Dheyne de Souza?
DHEYNE DE SOUZA – Nossa, essa é uma pergunta bem difícil. Inevitável: o quanto nós conhecemos de nós? Não sei. Eu olho para a pergunta e me pergunto se você (também) vê duas pessoas ou se vê apenas uma. Logo em seguida, penso que enumerar seria sempre impreciso. Mas, no geral, fugindo desavergonhadamente da pergunta, diria que pouco. Sendo um pouco mais aventureira, talvez, confesso que brinco de algumas camadas nessas identidades relacionadas ao nome, à linguagem. Confesso também que, no meu processo de escrita, às vezes acho que a personagem me conhece melhor do que eu a ela (estou com essa impressão atualmente, na escrita do meu romance, o que dá certa medida de angústia com a personagem). Eu considero um pouco difícil explicar essas situações de uma forma lógica ou sintética. Ou talvez seja um mistério. E se for mesmo, parece que, de qualquer modo, a gente se conhece pouco ainda.
DA – Sabendo que as águas do imenso e caudaloso rio da vida se movimentam constantemente, coloco novamente a pergunta que te fiz por ocasião da nossa última entrevista, em 2012. Afinal, por que escrever?
DHEYNE DE SOUZA – Antes de responder (ou de me esquivar de, rs), gostaria de deixar registrado o quanto fiquei feliz com a edição de “lâminas”. Agradeço muito ao meu companheiro, Helô Sanvoy, por ter feito uma obra especialmente para a capa do livro e com tanto diálogo com os cortes e alinhavos. Também fiquei emocionada com o trabalho cuidadoso e com grande medida de olhar poético de toda a equipe da martelo casa editorial. Agradeço a todes e particularmente ao meu editor, Miguel Jubé, pelo carinho e respeito com o objeto e subjetivo livro. O trabalho da Martelo, como o de tantas outras pequenas e médias editoras hoje no país, e a presença numerosa de revistas virtuais, como a Diversos Afins, têm sido, na minha opinião, sinais de resistência fincados neste nosso presente tão, para dizer o mínimo, difícil. Ter “lâminas” registrado neste 2020 significa muito para mim e me embala uma força para seguir trabalhando, com tantos exemplos de coragem aos redores. Sigamos! “N’oré Îukaî Xûéne!” Bem, sempre acho essa questão difícil de responder. Costumo dizer que é mais importante que comer, para mim. Mas é uma ficção até isso, avaliando bem. E se a gente cavucar um pouco, chega em subterrâneos ainda hoje muito íngremes. Então, se me permite a “leveza” do aparente fim:
esquife
de tudo isto, o que levar
o queixo alto, as páginas viradas
a lembrança amarelada do que latejou
algum sinal que sobrou no cenho, no colo, na velocidade do silêncio
quem sabe nada
nem serenos
hão de ocupar todas as horas
vezes algum lampejo de memória
como um livro em que nunca se banha duas vezes
de tudo isto
quem sabe tudo
não passou de pesadelo
e antes de terminarem as últimas linhas
já foram lavadas
levadas as mãos
e de dor nunca se soube
(poema inédito)
Fabrício Brandão é frequentador do mundo da Lua, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no planeta como editor da Diversos Afins, poeta, baterista amador, mestre e, atualmente, doutorando em Letras, pesquisando eus que trafegam pelo mundo virtual.