Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

Com quantas credenciais se faz um escritor? De pronto, a resposta pode apresentar perspectivas das mais variadas e, sem dúvida alguma, o caráter pessoal que cada criador carrega em si é quem dá a melhor tônica. A singularidade das experiências individuais parece mesmo apontar arejadas direções e, por assim dizer, configurar estratégias que derivam dos universos essencialmente particulares. Eis então o ponto de grande relevância: saber que um autor reproduz em sua obra toda a sorte de imagens e sensações que o atravessam de forma pungente.

Apartados das viciosas comparações, seguiremos pensando que aquele que escreve constrói rotas e saídas fundamentais para que seus textos digam respeito a uma espécie de traçado próprio da imaginação. Ainda que sejamos tentados a considerar que não existe nada de novo sob o sol, a matéria criativa sofre um fluxo de transformação capaz de conferir outras possibilidades de se contar a história do mundo. Daí que escrever é cruzar um deserto através do qual muitas imagens se turvam dada a imensa quantidade de referências em que mergulhamos nas nossas fugidias trajetórias de vida. E qual a solução mais adequada para não se perder em meio a esse turbilhão de informações e signos múltiplos?

Suspeito que um autor como Paulo Bono nos dê indicativos consistentes de que é possível erguer pontes e outras dimensões quando o tema é fazer das palavras aliadas de uma obra literária. Ao dizer isso, refiro-me ao fato de que ele encara seu engenho criativo como alguém que se lança para a literatura com o desejo genuíno de não se aprisionar aos ruídos impostos por certas limitações. Pelo contrário, Bono tem sido capaz de desacomodar pudores ao nos mostrar suas investidas literárias repletas de vida. E falar disso é reconhecer que o trunfo aqui está em desencavar e fazer desfilar ante nossos olhos de leitores toda uma sorte de cenários e personagens que encontram correspondência com aquilo que somos.

É esse Paulo Bono que agora entrevisto noutro momento de sua carreira, tempo que remonta aos efeitos do seu mais recente livro, Pepperoni (contos), lançado pela P55 Edição em 2024. Nunca é demais lembrar que a qualidade literária dele já vinha se delineando com os contos de Espalitando (Ed. Cousa, 2023) e o romance Sexy Ugly (Ed. Mondrongo, 2019). De posse de seu novo livro, Bono reafirma o compromisso de fazer de seu ofício de escritor uma representação coerente da vida que já mais podemos esconder, pois é ela que inalienavelmente nos constitui, seja lá quem formos. As provocações estão aqui postas nesta breve conversa, e delas ele não foge.

 

Paulo Bono / Foto: Vinicius Xavier

 

DA – Depois de Espalitando e Sexy Ugly, dois livros que são de fundamental importância para termos em conta as suas credenciais de autor, você agora nos oferta Pepperoni. No mais novo rebento, sua escrita está cada vez mais apurada e certeira, cujas narrativas revelam fragmentos instigantes de mundo, o mesmo mundo que às vezes tenta nos impor limites e pudores. Como foi estar nesse lugar de ver um outro livro surgir?  

PAULO BONO – Costumo dizer que Espalitando foi um livro de blogueiro. A maioria dos textos já estavam prontos. E Sexy Ugly era uma história antiga que eu já tinha na cabeça. Pepperoni foi diferente. Só havia mato. Me senti um pedreiro a levantar uma obra. Acordava cedo pra trabalhar nas histórias, nem que fosse uma página ou um parágrafo ou uma linha. Digo, antes da labuta que paga as contas, eu tinha esse cartão pra bater. E como hoje leio um pouco mais, acho que eu era um pedreiro com mais ferramentas. Temas, personagens, diálogos, palavras proibidas. Levantei cada parede do jeito que eu queria (ou tentei), mesmo que ninguém quisesse entrar nessa casa. Me diverti escrevendo, mas também suei bastante. Então o bacana é que eu não vi o Pepperoni surgir. Sinto que trabalhei pra isso.

 

DA – Esse seu processo com o livro novo remete também àquela ideia de que a criação literária é algo que envolve certa labuta e constância, inclusive para além da tão batida inspiração. Escrever, para você, sugere algum tipo de embate consigo mesmo até que as coisas aconteçam de fato?

PAULO BONO – Altos embates. É antes de sentar a bunda pra escrever que a peleja acontece. Quando passo dia e noite pensando pra onde vai a história, o que quero dizer, como dizer e se vale a pena escrever. Será que tenho apenas uma ideia estúpida? Será que sou incapaz de escrever algo que preste? Pra que diabo nasci? Isso pode levar um dia, meses ou anos. A história pode até morrer pelo caminho. Já sofri mais com isso. Hoje, até porque não tenho pressa de publicar, vejo esses embates como parte da maturação da ideia. Numa dessas, levou uns quatro anos pro Pepperoni sair do forno.

 

DA – Nesse tempo que o livro levou para ficar pronto, como se deu a construção dele em termos de estrutura e escolha das narrativas e suas temáticas? 

PAULO BONO – Depois do Sexy Ugly, eu só queria voltar aos contos, às possibilidades das histórias curtas. Não tinha em mente um livro, muito menos um tema que amarrasse tudo. Era só meu bloquinho de notas no celular com rabiscos e ideias de motes e personagens. Aí é interessante que o primeiro conto do livro foi exatamente o primeiro que escrevi – “Dr. Gori, o criador de monstros”. A coisa do garoto não ser o herói que desejava. Achei que a última frase dava pano pra manga. A partir dali, garimpei histórias de personagens que lutavam para ser alguma coisa. Surgiram ideias como o jovem que queria ser escritor, a mulher que não queria ser amada, o olheiro que queria voltar a ser bom, o cara que queria voltar a ser criança, o assassino que queria se sentir pleno e por aí vai. Cada conto com seu desafio de encontrar o próprio norte. Acontece que depois do livro finalizado, das releituras e tempo de maturação, achei que o que saltava daquelas páginas eram as falhas dos personagens. Como se o livro fosse uma timeline de traumas, medos, defeitos, egoísmo, machismo, estupidez, inveja, preconceitos, pecados, inabilidades, fragilidades diante do mundo e falta de sorte. Só que não como uma crítica ou num tom acusatório. Mas como um espelho de quem somos e a turma por aí tenta negar ou proibir de falar. Lembra do garoto que não conseguiu ser herói? Pepperoni é uma homenagem às nossas kriptonitas.

 

DA – Um dos pontos de relevância de Pepperoni é justamente esse elenco de personagens que de fato compõem nosso tempo. E você não se furta a colocar ali as mazelas derivadas dos comportamentos que atravessam essa gente, mesmo que expor tais feridas seja algo ruidoso nos dias atuais. Como é que se equaciona tudo isso em favor da literatura?

PAULO BONO – O ponto é perceber que essa gente sou eu, você, a vizinha, seu dentista, o padeiro, o presidente, sua cantora favorita ou o peixeiro da esquina. Quem vomita tais mazelas somos nós. Alguns apenas disfarçam mais, nem que seja apontando pro focinho do outro. É muito louco não poder falar sobre quem somos. Chega a ser uma ingenuidade suspeita achar que suprimir palavras e polir personagens vai curar as feridas do mundo. Há uma gincana de virtudes por aí que serve apenas pra ganhar likes e novos contratos. Esquecem que nossa riqueza é feita de luz e sombra. Esquecem que o que torna o super-homem mais próximo do ser humano é a kriptonita. É aí que rola um ponto a favor da literatura. Se o Instagram não faz o serviço sujo, abre-se essa lacuna. A literatura, como outro tipo de arte, está aí pra botar o dedo na ferida e mostrar como somos completos humanos.

 

DA – É interessante perceber que a figura de Deco Ramone, personagem que também está presente em Sexy Ugly, reaparece agora num dos contos de Pepperoni. Diria que essa escolha envolve a ideia de que sua obra está aberta a uma dinâmica que não se prende ao espaço e ao tempo?

PAULO BONO – O bacana é que o retorno de Deco Ramone era um pedido dos leitores do Sexy Ugly. A turma vinha com a ideia do personagem ser o meu Mandrake, o meu Bandini. Eu achava interessante. E um prequel que mostrasse Ramone no seu auge encarando figuras escrotas e dilemas morais caía como uma luva em Pepperoni. Trazer Ramone de volta é como revisitar a Lapinha ou Feira de Santana nas histórias. Como Gabo e Ubaldo tanto faziam com Macondo e Itaparica. Vai além de uma repetição temática. Ninguém é o mesmo ao longo do tempo. Nem as pessoas nem os lugares. Então abre-se mais uma oportunidade pra literatura. Reencontrar personagens e cenários, enxergar histórias por ângulos diferentes e por aí vai. É uma dinâmica divertida. 

 

DA – Por falar em leitores, o quanto a recepção de sua literatura influencia nos seus processos de escrita?

PAULO BONO – É bacana quando alguém chega e diz que um conto fez rir ou chorar. Funciona como um empurrão pra gente seguir escrevendo. É o tipo de influência que dá um gás. Mas, durante o processo de escrita, tento não me preocupar com a receptividade. Tem uma turma que espera que eu escreva sempre a mesma coisa e outra que jamais lerá minhas histórias. Se eu pensar em qualquer uma delas, não saio do lugar.  

 

Foto: Vinicius Xavier

 

DA – Há quem lhe considere como sendo uma espécie de imitador de Bukowski. O que acha disso?

PAULO BONO – É uma impressão acertada. Tem até um conto em Pepperoni que canta essa pedra. O que  lamento é a razão de afirmarem isso. A impressão que dá é que pinçam alguns sinais na superfície e pronto. Qualquer texto que tenha pau, xota e bebida recebe o diagnóstico automático de imitação de Bukowski. Uma visão reducionista sobre um autor gigante que escrevia com humor e ternura histórias cheias de humanidade. Quero dizer, eu apenas tento imitá-lo, mas não sou feliz na missão. Porém, conheço escritores de mão cheia que têm Buk como patrono — ou se preferir — imitadores de Bukowski. Imitação pode ser um ponto de partida natural. A gente tem por aí tantos imitadores de Machado, Clarice, Roth, Kerouac e Veríssimo. Imagine quantos Itamares Vieiras pipocaram como gremlins nos últimos anos. Já no meu bolso, vai a carteirinha do clube dos imitadores do Velho. Mas devo dizer que minha pseudo-imitação é promíscua e ordinária. Quando não tem paus e xotas, talvez seja difícil perceber. Mas em Pepperoni, tentei imitar também Vonnegut, Bradbury, Salinger e Rubão. Como obviamente não consegui, o resultado é Paulo Bono.

 

DA – A Literatura pode realmente tudo, inclusive não se deixar afetar por tentativas de controle ideológico ou toda sorte de censuras?  

PAULO BONO – Não acho que ela esteja acima do bem e do mal. Mas, assim como qualquer tipo de arte, a literatura está aí pra controverter o que é o mal e o bem, subverter a ordem das coisas e chutar as fuças de qualquer tipo de controle ou censura.

 

DA – Nossa contemporaneidade tem mostrado uma atenção maior a temas que antes normalizavam desrespeitos e invisibilidades, sobretudo com relação a minorias. E isso parece ter ecoado também de forma significativa no terreno literário. Acredita que estamos um pouco melhores?  

PAULO BONO – Estou com Chico Science. “Um passo à frente e não estamos mais no mesmo lugar”. O aumento da representatividade nas artes, mesmo quando a fórceps, ajuda bastante. Uma turma que estava fora do jogo ganhando a vez, ganhando voz, ganhando as páginas. Não sei, talvez o passo seguinte seja vencer as mesas nichadas. Que tenhamos essas minorias escrevendo mais humor, noir, romance, terror, ficção científica, imitando Bukowski ou quem quiser. É bom pra todo mundo e a literatura agradece. 

 

DA –  Trazer Pepperoni ao mundo simboliza qual momento de sua jornada como escritor?

PAULO BONO – Primeiro, acho que simboliza um amadurecimento como leitor. Li bastante durante a escrita. Não foi um lance de quantidade, mas de constância, releituras e descobertas de autores. Pepperoni é consequência dessa ingestão de nutrientes, de um tesão pelas possibilidades literárias. É também um livro que configura um senso de liberdade como autor. Não tenho rabo preso com temas nem curtidas. Não tenho uma caralhada de seguidores, nem quero ter. Não corro atrás de prêmios nem convites. Não vivo disso e nem vou ganhar dinheiro com isso. Só sobra a vontade de escrever. Escrever o que eu quiser. E isso é uma puta sensação de liberdade.

 

DA – Já lhe ocorreu a ideia do que de fato buscamos com a Literatura, sejamos leitores ou vestindo a pele de escritores?

PAULO BONO – Acho que é muito pessoal. Alguns buscam na literatura o que outros encontram na música, no surf, no bar, numa mesa de pôquer ou num pagode todo fim de semana. Uma espécie de preenchimento, alívio, sei lá. Aquela coisa de não viver sem isso. E talvez mais foda do que o que a gente busca é o que a literatura entrega. De repente, você abre um livro pra se divertir e leva um soco na cara. Você busca mistério e ele diz o que o jornal vai falar mais tarde ou por que toda reunião de condomínio é um inferno ou joga na cara que o problema é você. Nunca se sabe. Acho que a tal busca também varia na pele do escritor. Tem gente que escreve pra ganhar dinheiro, outros pra botar pra fora, outros pra matar o tempo e outros pra não enlouquecer. E estão todos certos. 

 

Fabrício Brandão é editor da Diversos Afins, sonhador, míope, baterista amador, gosta de labutar com as palavras e de construir enredos para os espantos existenciais. 

 

 

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